Reflexões, notas, impressões, apontamentos, comentários, indicações, desabafos, interrogações, controvérsias, flatulências, curiosidades, citações, viagens, memórias, notícias, perdições, esboços, experimentações, pesquisas, excitações, silêncios.

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2007

A onda

É você que está farto do constante massacre publicitário em algumas rádios? De flashes noticiosos entediantes e com os apresentadores a repetirem a mesma notícia ad eternum? De locutores com voz de bagaço logo de manhã, como funcionários renitentes em picarem o ponto? De ouvir o Phil Collins, o Brian Adams e os pesos-pesados do mainstrem? De concursos idiotas e um sentido de humor bocejante? Quer ouvir verdadeiros debates e rubricas temáticas com um painel de convidados de luxo e não tem onde?
Se a resposta for afirmativa, nem hesite: ouça sem restrições a Rádio Europa (já sinalizada neste blogue). Poderá sintonizá-la em 90.4 fm na Grande Lisboa, ou em streaming a partir do site, onde quer que se encontre. Não dará o tempo por perdido. Em termos musicais, o Jazz impera, numa escolha criteriosa e heterodoxa. A crónica temática sucede-se, abarcando os mais variados temas, na cultura, na política, na gastronomia, na ciência, nas novas tendências, etc. A informação é do melhor. Ufa!

À espera de Godot

aqui se beliscou ao de leve o alvoroço atlântico provocado pela demissão de Jardim. Como é sabido, o peronismo manso e edificante instalado na Madeira há 30 anos está a meio caminho entre o reinado de D. Pedro, o Cruel e um keynesianismo insuflado pela generosidade dos sucessivos Governos da República, para quem os deputados madeirenses eram o sagrado penhor limiano no Parlamento. Todavia, por muito que custe a alguns, a "democracia" madeirense não é muito diferente da de Sócrates. É talvez mais ruidosa, mais garrida, mais chocarreira. O contínuo e escandaloso desfile de yes man pelas prebendas do Estado, a ocupação de cargos públicos pelos boys e girls disponíveis só pode aconselhar este entendimento. Experimentem ser voz dissonante no que toca às regras de admissão para um cargo público, ou de concessão de determinada empreitada, ou de licenciamento de determinada actividade, ou à "boa prática" de determinado comissário destacado num "serviço público" ou de um político eleito pelas cores da maioria. Verão o que acontece. Terão em cima de vós uma boa dose de arrogância e dificuldades. A mediocridade, a incompetência e a proximidade dos favores do poder andam de mãos dadas. Será que Sócrates é mais autoritário do que Jardim? Talvez não. Simplesmente dissimula o seu muito melhor. É o representante de uma espécie de cavaquismo científico, onde nada é deixado ao improviso, ou à arbitrariedade. Com a suave complacência da comunicação social, é claro. E com a bênção de quem ainda não percebeu isto.

terça-feira, 27 de fevereiro de 2007

SLB

Eis a visão inefável de uma paixão para toda a vida. Mesmo não se sendo "bom" e, muito menos, "pai de família", como é o caso do escriba. O resto ainda é conversa.

A palavra

"Ah, mas que significam os versos, quando os escrevemos cedo! Devia-se esperar e acumular sentido e doçura durante toda a vida e se possível durante uma longa vida, e então, só no fim, talvez se pudessem escrever dez versos que fossem bons. Porque os versos não são, como as gentes pensam, sentimentos (esses têm-se cedo bastante), – são experiências. Por amor de um verso têm que se ver muitas cidades, homens e coisas, têm que se conhecer os animais, tem que se sentir como as aves voam e que se saber o gesto com que as flores se abrem pela manhã. É preciso poder tornar a pensar em caminhos em regiões desconhecidas, em encontros inesperados e despedidas que se viram vir de longe, – em dias de infância ainda não esclarecidos, nos pais que tivemos que magoar quando nos traziam uma alegria e nós não a compreendemos (era uma alegria para outro -), em doenças de infância que começam de maneira tão estranha com tantas transformações profundas e graves, em dias passados em quartos calmos e recolhidos e em manhãs à beira-mar, no próprio mar, em mares, em noites de viagem que passaram sussurrando alto e voaram com todos os astros, - e ainda não é bastante poder pensar em tudo isto. É preciso ter recordações de muitas noites de amor, das quais nenhuma foi igual a outra, de gritos de mulheres no parto e de parturientes leves, brancas e adormecidas que se fecham. Mas também é preciso ter estado ao pé de moribundos, ter ficado sentado ao pé de mortos no quarto com a janela aberta e os ruídos que vinham por acessos. E também não é ainda bastante ter recordações. É preciso saber esquecê-las quando são muitas, e é preciso ter a grande paciência de esperar que elas regressem. Pois as recordações mesmas ainda não são o que é preciso. Só quando elas se fazem sangue em nós, olhar e gesto, quando já não têm nome e já não se distinguem de nós mesmos, só então é que pode acontecer que, numa hora muito rara, do meio delas se erga a primeira palavra de um verso e saia delas."

Rilke, “Os Cadernos de Malte Laurids Brigge”, tradução de Paulo Quintela, ed. “O Oiro do Dia”, Porto, 1983

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2007

Já falta pouco

Sobre o futuro não muito distante de um formato digital do jornal, obrigatório ler este texto de JPP no "Abrupto". Uma folha de papel electrónico, com um microchip incorporado, de modo a que seja actualizada ao longo do dia, por meio de wireless, parece um conto de ficção científica. Mas, na verdade, só ainda o é porque a tecnologia necessária ainda é cara e não suficientemente testada.

domingo, 25 de fevereiro de 2007

Curtas

A ler com atenção "A fraude: a esquerda multiculturalista", de Henrique Raposo, no blogue da Revista Atlântico. Ficámos elucidados como este novo "nacionalismo das minorias", propalado pela esquerda "moderna" se pode tornar tão pernicioso como outro nacionalismo qualquer.

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2007

O Pântano

O regedor Jardim veio à metrópole, mais concretamente a casa do Sr. Silva, suplicar por eleições antecipadas na Madeira, após se ter demitido das suas funções. É que o Carnaval da sua governação, baseada num despesismo irresponsável e escandaloso, teve os seus dias contados, com a recente aprovação da nova Lei das Finanças Regionais. Acto contínuo, a nomenclatura do arquipélago, habituada a engordar junto à teta do orçamento de estado, e o próprio chefe da macacada, perceberam que teriam que despedir, cortar, retirar mordomias. Vai daí, nada como um plebiscito peronista para repor a normalidade "democrática" na região. E colocar a oposição local em maus lençóis. Especialmente o PS. Que terá de desenvolver uma estratégia corajosa e certeira para ganhar pontos. Numa campanha onde as diferenças em relação ao Carnaval pouco se farão sentir. E para uma eleições cujas consequências serão exclusivamente políticas. Com o semi-existente Marques Mendes à espreita dos louros que poderá colher.

Imagens de Portugal romântico - 16

Coimbra, vista de Este
Mértola

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Diário de um tolo - 16

Na semana passada regressei a Sintra, por uma tarde. Na continuação do episódio caricato que revela o funcionamento da Justiça e que aqui relatei. Neste caso, não sei se tem a ver com insegurança dos magistrados, atribuível ao início de carreira. Ou ao próprio funcionamento caótico daquele Tribunal. Ambos o magistrados eram mulheres. E isso pode explicar muita coisa: mostrar um excesso de zelo defensivo pode ser o melhor argumento para a irrepreensibilidade na carreira. Mas é péssimo para a aplicação equilibrada da Justiça. É claro que, mais uma vez, a audiência foi suspensa. Desta vez porque, ao contrário da primeira, não estavam presentes duas testemunhas. E mesmo assim não se deu início à sessão. Agora que houve duas faltas, isso já constituiu motivo para a continuação! E nada pude fazer, pois o MP não prescindiu delas.
O melhor de tudo foi o diálogo interessante que mantive com um casal de franceses, no comboio para Sintra. Às tantas resolveram perguntar-me qual era o primeiro nome do "président de la Comission" Barroso. Lá os elucidei, e ainda que, quando foi nomeado, vinha de ocupar o cargo de PM e não de Ministro dos NE, como pensavam. Um "libérrrral?" Percebendo que esta palavra tem em Portugal uma conotação que não tem no resto da Europa, respondi que não, não senhor, porque no nosso país há uma tradição omnipresente do Estado em todos os domínios e, como tal, ainda é muito cedo para um verdadeiro liberal chegar a PM. A conversa prosseguiu com as eleições presidenciais em França. Questionei-os se o outsider Bouvet, o conhecido activista anti-globalização e pela "cozinha lenta" sempre faria a campanha da prisão. Fiquei a saber que esse episódio foi deliberadamente empolado por si para aumentar a simpatia do eleitorado, mas que, em rigor, a sua popularidade é escassa. A tarde estava chuvosa e nublada. Ao despedir-me, após algumas algumas sugestões de visita, felicitei-os porque "escolheram" o tempo certo para se descobrir Sintra.

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2007

Os sonâmbulos

O que mais nos caracteriza é aquele ar sonâmbulo, abstracto, aquela ideia fixa em parte alguma, aquele devaneio em pleno Vácuo, ou manso delírio extasiado na sua própria nulidade. Sonhamos um sonho estéril, incapaz de se converter em acção (…) O português olha, mas não vê, ou vê como se ouvisse, porque o absorve uma espécie de música silenciosa, uma tendência artística inutilizada por incapacidade realizante. Mas embala-se, como esquecido, nessa música. (…) O português é um ser indefinido; ignora o limite das coisas; não pode ter um conceito claro da existência, mas uma concepção nebulosa sentimental. E, por isso, principia tudo e nada acaba.

Pascoaes, “Duplo Passeio”, Parte I, I, colecção “Obras Completas de Teixeira de Pascoaes”,
organização de Jacinto do Prado Coelho, volume X, Livraria Bertrand, 1975

O perigo

Se fomos postos no meio da vida, foi por ser este o elemento ao qual estamos adequados e melhor correspondemos. Além disso, por obra de uma adaptação milenária, tornamo-nos tão semelhantes a esta vida que, quando permanecemos imóveis, e graças a um feliz mimetismo, mal nos podemos distinguir de tudo quanto nos rodeia. Não temos nenhuma razão para recear ou desconfiar do mundo onde vivemos. Se nos inspira terrores, esses são os nossos terrores. Se contém abismos, esses abismos pertencem-nos. E se existem perigos, devemos procurar amá-los. Contanto que procuremos orientar e ajustar a nossa vida à medida deste princípio que nos aconselha a nos atermos sempre ao mais difícil, tudo quanto agora nos pareça ser o mais estranho, acabará por se revelar o mais familiar, o mais fiel.

Rilke, “Cartas a Um Jovem Poeta”, oitava carta, de 12 de Agosto de 1904

terça-feira, 20 de fevereiro de 2007

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2007

Photobucket

Muitas vezes sentimos a falta de um espaço web gratuito onde recolher e alojar imagens – como ícone num forum de discussão, para um weblog onde não se admitam imagens, etc. Frequentemente, não é permitido apontar para as imagens do nosso servidor gratuito mediante enlaces. Para resolver estes problemas, surgiram várias webs especializadas, sendo uma das mais fácil de usar o photobucket.com. Entre as suas muitas funções, destaco a de organizar o conteúdo mediante catálogos para maior facilidade de manejo e a possibilidade de copiar e colar tags e enlaces. A única limitação diz respeito às imagens não poderem ultrapassar os 250k. O espaço é de 100 megas por cada usuário.

sábado, 17 de fevereiro de 2007

A contradição


“Vi frequentemente homens serem incivilizados por excesso de civilidade, e importunos por excesso de cortesia”

Montaigne, Ensaios, I, 13

terça-feira, 13 de fevereiro de 2007

Perdições - 4


No seguimento do nº 1, Vincent Kenis gravou e produziu este excelente Congotronics 2, dando a conhecer ao mundo a estranha e espectacular música de sete bandas electro-acústicas recolhida nos subúrbios populares de Kinshasa (Congo). Os músicos das bandas envolvidas são, na maioria, recém-chegados à capital, provenientes dos mais variados backgrounds geográficos e culturais. Afim de prosseguirem o seu papel social e fazerem-se escutar pelos seus concidadãos, apesar dos elevados níveis de ruído urbano, recorreram a uma electrificação artesanal dos seus instrumentos, recriando-os. Em grande parte, também graças à profusão de sons distorcidos, gerados por uma amplificação DYI. O que provocou uma mutação radical no som produzido. Talvez por isso, os aficionados da World music, electronica e rock de vanguarda desde logo notaram a riqueza sonora destas bandas e as comparações não tardaram a surgir: desde os Can, Krautrock, até Jimi Hendrix, Lee Perry e ao proto-techno. Mas estas similitudes, é bom que se diga, são puramente fortuitas, uma vez que estas bandas produzem exclusivamente uma espécie de trance-music tradicional, alheia ao que se produz no Ocidente.
Congotronics 2 inclui igualmente um DVD com 41 minutos, contendo surpreendentes registos visuais captados durante a gravação do material sonoro utilizado no álbum. Realço a incrível sessão dos Sobanza Mimanisa, em que, ao som de um ritmo propício ao êxtase, brilha o erotismo da dança de duas mulheres, capaz de fazer esquecer a poluição sonora e visual que nos cerca.

O equívoco

No rescaldo dos resultados do referendo de domingo - já agora, o "sim" ganhou finalmente aqui na Guarda, com alguma expressão - o que tenho lido só confirma o que já suspeitava: muitos dos que alinharam no não, de tanto confundirem a opinião pública durante o último mês, acabaram por se confundir a si próprios. Veja-se este texto no 31 da Armada, por exemplo. Em vez de perceberem que o Portugal miguelista foi definitivamente enterrado e que a maior derrotada neste referendo foi a Igreja Católica e os netos de Salazar, prosseguem o tortuoso exercício sofístico de quem nada quer ver: que a grande maioria dos cidadãos querem resolver as suas questões íntimas fora da alçada do Estado; que nenhum sistema moral de convicções ou crenças, por muito representativos que sejam, se pode substituir aos demais; que triunfaram os sinais inequívocos de maturidade democrática e de recusa de um paternalismo sufocante - à margem dos actores habituais - evidenciados durante a campanha. E que não tentem agora, os sectores mais atávicos e fundamentalistas, ganhar na secretaria o que perderam na consulta popular. Voltaremos a este tema.

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2007

A partir de hoje, o jornal Público mudou de rosto e de estratégia. As novidades: alterou profundamente o seu grafismo, agora mais intuitivo, reformulou os suplementos, reuniu novos colunistas. Por outro lado, traz consigo diariamente o suplemento P2, com artigos de fundo, entrevistas, secções de cultura, espectáculos, ciência e media. Sem deixar de dedicar um olhar especial ao que se passa na web e, particularmente, na blogosfera. Pena que a edição local Centro tenha sido suprimida. Veremos se a aposta será ganha.

Quadratura do circulo


Kodenko Alexandr

domingo, 11 de fevereiro de 2007

A chuva

Hoje perpassa no ar um vago cheirinho a naftalina-e-seriedade-nervosa-como-nos-casamentos. Por falar nisso, era um belo dia para casar. Os convidados sempre poderiam dizer, às tantas, "olha pá, a festa até está gira, mas tenho que ir votar, sabes"... E os noivos, às pinguinhas, acabariam por ficar finalmente em paz. Que é o que realmente ansiavam... Mas descansem. O amor ao próximo, e sobretudo ao distante, é o meu pão e inspiração diária. Nisso sou mesmo cristão. Mas o melhor, o melhor deste dia é mesmo a redescoberta de um "amor" antigo: Patricia Barber. Ouvi-la em "Lord, let it rain", uma adaptação de um gospel antiguinho, é estar próximo dos deuses. Provem também.

Diário de um tolo - 15

A verdadeira dor obriga a encarar de frente as grandezas e as misérias da vida, sem desviar os olhos. Mesmo se a devastação inimaginável for o cenário dominante, tal não me deve assustar. Só há que recear o que lá não está, mas teimo em continuar a ver.

sábado, 10 de fevereiro de 2007

Passeando na blogosfera - 7

Na sua crónica publicada na revista "Atlântico", Carla Quevedo elege O Jansenista como o melhor blogue português da actualidade. Quase sempre tenho seguido as observações e indicações da autora nessa sua coluna, em que a blogosfera é o tema dominante. Fui então verificar in loco a justeza da apreciação. A primeira pergunta que dirigi a mim próprio foi "O que é um jansenista?". Fui então à Wikipédia obter o devido esclarecimento. Trata-se do adepto de uma teologia cristã que surgiu em França , no século XVII e desenvolvida no seguinte: o jansenismo. E que o nome se deve à sua origem nas ideias do bispo de Ypres, Cornelius Jansen. Basicamente, era uma versão modificada do calvinismo, que por sua vez se baseia na teologia de Agostinho de Hipona. Muito bem. Suspeito fortemente que M. de Sainte Colombe, o conhecido mestre de viola da gamba celebrizado no filme "Tout les Matins du Monde" também era jansenista.
Passemos então à degustação. O autor gosta de partilhar os seus gostos musicais, quase sempre no domínio do Jazz e da música erudita, os literários (propondo obras no original) e algumas sugestões de turismo cultural. É claro que o bom gosto predomina. As citações, algumas no vernáculo original, são irrepreensíveis. A polémica é elegante e a previsibilidade está ausente. Mas é em alguns artigos de opinião que o autor se revela um verdadeiro livre-pensador. Embora não conseguindo disfarçar alguma arrogância, que passa por meneios de estilo. Mas o todo é muito mais mais do que a soma das partes. O que significa que, sendo coerente ao nível das escolhas, por sua vez alcançou, por direito próprio, uma distinção que não cessa de surpreender.

A virtude

"Nunca saberás o que é o bastante se não souberes antes o que é demais"

William Blake, "O Casamento do Céu e do Inferno"

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2007

Graffitis - 8


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As trevas

O juiz Helder Fráguas, autor do blogue Aqui e Agora, na comunidade blogosférica do jornal "Sol", de que sou também membro, acaba de ser suspenso das suas funções, por decisão do Conselho Superior da Magistratura. A sanção resulta de um processo disciplinar que lhe foi instaurado graças a um artigo que escreveu há uns anos para um jornal do Barreiro. Onde teria empregue linguagem menos apropriada a respeito de uma caso em que um talhante foi condenado por ter violado uma criança de 9 anos. O CSM entendeu que, ao exprimir-se desse modo, o juiz infringiu o estatuto dos magistrados judiciais. Por muito que isso custe à nossa sensibilidade e ao nosso inequívoco repúdio e indignação pelo crime, o juiz não deveria, nessa qualidade, dizer o que disse. Poder-se-á dizer, com alguma razão, que, ao imporem limites excepcionais à liberdade de expressão, certos estatutos profissionais estão a preservar a dignidade da classe no seu todo. No entanto, quer-me parecer que, neste caso, a sanção imposta socorreu-se de um pretexto. Válido para silenciar o juiz, mas que encobriu o verdadeiro objectivo: calar o cidadão Helder Fráguas. Basta ler os últimos textos que publicou no blogue para se perceber como tocaram em algumas susceptibilidades corporativas. Numa classe onde o corporativismo é o pão nosso de cada dia - veja-se o tipo de discurso do actual presidente do STJ. E onde mais facilmente se punem as ovelhas "tresmalhadas" do que se apontam as incompetentes.

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2007

Nenhum parvo ou parvo nenhum?

Dando início a uma série de digressões acerca de algumas expressões que utilizamos correntemente no luso vernáculo, começo hoje por essa pérola que dá pelo nome: "fulano não é parvo nenhum!".
Os mais incautos julgarão que o epíteto designa alguém que se distinguiu numa área determinada da investigação científica, ou que se notabilizou pela filantropia, ou que é um grande pensador, ou que tem uma moral impoluta, ou que paga escrupulosamente os seus impostos, ou que dinamiza determinada colectividade ou determinado jornal, ou cuja dimensão cívica é assinalável, ou que dispensa maior tempo à família do que o habitual, ou que se distinguiu em alguma disciplina artística, ou que tem uma participação activa em defesa do meio ambiente, ou que é um profissional exemplar na sua área, ou cujo saber e curiosidade sobressaem pela vastidão...
Pois estão redondamente enganados. Em Portugal, dizer de alguém que "não é parvo nenhum" significa simplesmente que se escusou airosamente às obrigações fiscais, que arranjou um emprego assaz pretendido, que entrou em determinado local sem pagar, que tem uma isençãozinha que lhe dá direito a ser diferente de todos os outros, que tendo sido presidente de certa colectividade, foi admitido em lugar de destaque numa instituição de ensino sem dispor de qualquer qualificação para o efeito, que conseguiu enganar tudo e todos, colocando o seu dinheirinho a coberto dos credores, que sabe sempre primeiro que todos quando sobre si recai uma ordem judicial, que conseguiu que a sua equipa ganhasse a taça à margem do mérito desportivo, que não está para perder tempo a dar prioridade aos peões nas passadeiras, que acabou por construir mais um andar na nova moradia, cuja falta de licença foi suprida da forma expedita que se imagina, que é um incompetente mas não deixa de ser promovido por isso...
Em resumo, a expressão justifica, deifica, "normaliza" o chico-espertismo, essa grande instituição nacional. Tornando possível uma tolerância razoavelmente consensual perante o arranjinho duvidoso, a finta obscura, o "faz-de-conta" espertalhaço. Democratizando-os, coloca-os ao alcance de todos, de tal modo que qualquer um pode ascender a "parvo nenhum". Mas nem por isso os que não conseguem lá chegar se conformam com o estatuto de "nenhuns parvos". Era o que faltava! Precisamente porque só um parvo nega essa qualidade a outro! Só um parvo reconhecerá que um "parvo nenhum" é possuidor de um dom que ele não tenha, ou de uma qualidade especial que ele não possa desenvolver, ou de uma oportunidade de que não possa tirar partido. Por essa razão, pagam adiantado, nomeando os meros espertalhões como "parvos nenhuns".
Mas fazem-no por exclusão de partes, não lhes concedendo um destaque inconveniente e imerecido. É que a inveja ainda pesa... Todavia, publicamente gabam-lhes profusamente a perícia. Para deles se sentirem próximos, cúmplices, familiares. Repare-se pois que os felizardos passam a ser "parvos nenhuns" e não "parvos alguns". Dessa forma, a mediania fica salvaguardada. Quando chegar a hora da "promoção", a condescendência que se "deu" de avanço irá ser devidamente recompensada. Ficando garantidas a invisibilidade e a impunidade.
Por outro lado, cada "nenhum parvo" que, podendo, um dia há-de ser um "parvo nenhum", acaba por reconhecer,
no seu íntimo, que a façanha resulta de um cálculo feliz ou de uma mediania esforçada. Mas como a risibilidade desses factores é transformada em qualidade insuspeita, nunca haverá o perigo de, sendo eu ou o leitor o próximo "parvo nenhum", passar alguém a ser algum parvo.

Publicado no jornal "O Interior"

A simpatia

A edição de Fevereiro da revista Atlântico continua a mostrar porque é que esta publicação de actualidade política continua a fazer a diferença no panorama nacional. Do excelente naipe de articulistas e trabalhos publicados é difícil eleger aqui os mais curiais. Apesar da "injustiça" da escolha, destaco aqui quatro textos:
1. "O que esperar da UE em 2007?", de Bernardo Pires de Lima: uma análise descomplexada das questões colocadas a propósito da actual presidência alemã, da eminente presidência portuguesa, da afirmação da Alemanha como interlocutor privilegiado de Washington, substituindo Londres, da recente adesão da Bulgária e Roménia e do complexo dossier turco;
2. "Descriminalizar, Despenalizar, Nacionalizar", de Manuel de Lucena: uma perspectiva heterodoxa sobre a grande questão nacional do momento, onde se colocam algumas interrogações aos dois lados da contenda sobre a salvaguarda da contenção do Estado, quer em punir quer em promover o aborto. É claro que, mesmo tendo uma posição inequívoca em favor do sim, não me impede de ler com agrado uma reflexão bem estruturada sobre o problema.
3. "Sucesso e fracasso no Iraque", de Rui Ramos: a destruição da ideia de que foram os neo-conservadores quem mais incentivou o presidente Bush à intervenção militar no Iraque, pois Dick Cheney e Rumsfeld nunca o foram.
4. "Três ruas para viver", de Paulo Tunhas: uma excelente crónica cujo tema de fundo é a onda de "compaixão" que suscitou a recente execução de Saddam. PT parte de uma sequência de "O Idiota", de Dostoievski, em que o Príncipe Mychkine relata a execução de um condenado, por ele presenciada. O herói, num exercício analógico, imagina o que aquele teria sentido nos seus último momentos de vida. PT conclui, e bem, que o episódio diz respeito à forma mais simples de simpatia: colocarmo-nos no lugar do outro. Uma espécie de "dever de sensibilidade"que identifico com a compaixão budista. Mas o autor sinaliza uma outra forma de simpatia: "desejar que o outro não estivesse lá", apelar a uma misericórdia que reponha o que se sente como uma injustiça. PT conclui que tendemos a confundir os dois planos, isto é, a "exprimir a primeira ao modo da segunda", pois a sensibilidade só adquire credibilidade com a ajuda da "emoção". E quando um acontecimento tão impressivo como este corre mundo, ninguém quer ficar de fora de uma onda emocional que reforça o que se julga ser a "humanidade" que nos habita. Um processo que PT identifica como o "reflexo automático do gregarismo opinativo". Uma "surpresa" que um sentimentalismo postiço obriga a dizer: "sim, eu também".

Quando estamos sós com tudo o que amamos

"Só existe uma solidão. É grande e difícil de suportar. E quase todos nós conhecemos horas em que de bom grado a cederíamos a troco de qualquer convivência, por muito trivial e mesquinha que fosse; até pela simples ilusão de uma pequena coincidência com qualquer outro ser, mesmo com o primeiro que aparecesse, ainda que assim resultasse talvez menos digno. Mas acaso sejam estas, precisamente, as horas em que a solidão cresce – pois o seu desenvolvimento é doloroso como o crescimento das crianças e triste como o início da Primavera – ela, sem embargo, não deve desconcertá-lo, pois o único que, por certo, nos faz falta é isto: Solidão, grande e íntima solidão. Mergulhar em si mesmo e, durante horas e horas, não encontrar ninguém…Isto é o que importa conseguir. Estarmos sós, como estivemos sós quando éramos crianças, enquanto á nossa volta andavam os grandes de um lado para o outro, enredados em coisas que pareciam importantes e grandes, só porque eles se mostravam muito atarefados, e porque nós não entendíamos nada dos seus afazeres."

Rilke, Cartas a Um Jovem Poeta

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2007

Ainda têm dúvidas?

Ontem fiquei definitivamente esclarecido sobre o "vale tudo" a que, em crescendo, recorrem muitos activistas do Não no próximo referendo. Assemelhando-se, cada vez mais, a contadores de histórias de uma tele-igreja evangélica. O espisódio conta-se em poucas palavras. Depois de um serão de trabalho, liguei o aparelho de televisão. No canal Sic Radical estava a ser transmitido aquele programa um bocado idiota, em que há dois pivots num estúdio detrás de uma mesa de som, lendo sms dos espectadores e mandando uns bitaites para um público essencialmente juvenil. Só que, desta vez deparo com um "jovem" numa pose claramente clownesca. Debitando um fraseado desgarrado, mas reconhecível, a propósito da campanha em curso, para uma pequena assembleia de adolescentes presentes no estúdio. Convenci-me que se tratava de um número cómico, pois todos os indícios apontavam para tal. Às tantas, saca de um telemóvel, onde reproduziu o que era suposto serem as batidas cardíacas de um feto. Com direito a um apelativo osciloscópio no visor e tudo! Rematou com a ideia de que "se queres ser modernaço, vota não!", sem abandonar o registo paródico, tipo "olá meus, querem ver, isto é fixe, heim!", e "eu também sou jove, tão a domar?". Parecia uma sequência do TV Shop nos piores momentos! Em seguida, interveio uma senhora que participava no "debate", mas do lado do "sim", expondo as suas razões à plateia. Nada mais. Só então percebi que aquilo era "a sério". Tão "a sério" que imediatamente pensei na intervenção do "jovem" oficiante como absolutamente indicada para visionamento com fins terapêuticos na secção de afásicos de um hospital psiquiátrico, num seminário sobre marketing agressivo, para criativos de escrita humorística e, de um modo geral, para os fãs do Gato Fedorento.
Mas sobretudo para tirar as dúvidas, a quem ainda as tem, sobre quem defende o quê e como, neste debate.

O Avião madeirense

terça-feira, 6 de fevereiro de 2007

A Inquisição vem a seguir

«A desumana insensibilidade com que os adversários da despenalização convertem o direito à maternidade e à paternidade numa obrigação absoluta - incluindo em caso de gravidez indesejada ou, mesmo, insustentável, em termos afectivos, psicológicos, familiares, económicos, sociais, etc. - revela uma dose de intolerância e de incompreensão que só o dogmatismo e o fundamentalismo religioso ou moral podem justificar.»

Vital Moreira, Público, 06.02.2007


Liberdade, Igualdade, Fraternidade

Ao contrário do que vem nos manuais de História e do que pensa a intelectualidade sub-gaulesa que ainda sobrevive no nosso País, em termos de liberdade (ou liberdades) nada devemos à Pátria de Descartes e Lamartine. Refiro-me às liberdades civis, e sobretudo o seu núcleo mais importante, as liberdades negativas, tais como ainda hoje são vertidas nos textos constitucionais. E ainda ao Estado laico, à separação dos poderes e mútuo controlo. Numa associação simplória de causa-efeito, fez-se descender estas conquistas directamente da Revolução Francesa. Mais concretamente da célebre Declaração de Direitos. Não creio de todo que assim seja. A liberdade, tal como hoje é entendida e vivida, é um epígono da Kant, quando lhe retirou as vestes teleológicas, mas sobretudo do parlamentarismo inglês e da Revolução Americana. No primeiro caso, a lição de as liberdades nunca poderem ser impostas de cima, mas organicamente consolidadas. Em defesa do indivíduo, naturalmente, mas também condição da sua cidadania. No segundo, temos um bom senso de pequenos proprietários, num momento histórico em que a tecnologia ainda não tinha separado irremediavelmente o homem da compreensão e do domínio de facto dos objectos com que lida no seu dia a dia. Um bom senso que erigiu um sistema de poderes que se fiscalizam mutuamente e que da política retirou o fundamental: os factos resultam da acção e não de intenções. Sobre eles rege a lei e nada mais.
Para uma melhor percepção deste entendimento, dirigi-me à Sé, onde observei, mais uma vez, os danos causados no retábulo pela soldadesca napoleónica na 1ª Invasão. Falo de destruição gratuita, que nada acrescentou. Um acto de selvajaria , a vis dos conquistadores que, em nome da ambição de um homem, pela força das baionetas quiseram impor a liberdade, a igualdade e a fraternidade. Uma coisa ficou, no entanto: o Code Civil napoleónico, que inspirou toda a legislação oitocentista europeia no domínio do direito privado. Por cá, em particular o Código de Seabra, de 1867, que vigorou um século.

Pensar em voz alta

Passou ontem à noite uma longa entrevista - conduzida por Rui Ramos - a Vasco Pulido Valente, na RTP N. Para quem aprecia a verdadeira liberdade de pensamento, como é o caso do escriba, estes momentos são naturalmente de celebração. O historiador passou em revista o que de mais relevante se passou em Portugal nos últimos 40 anos. O marcelismo, o pronunciamento do 25 de Abril, o PREC, as nacionalizações, Mário Soares, Sá Carneiro, Cavaco, Sócrates, etc. E fê-lo desenrolando um fio de pensamento absolutamente coerente, um destemor não colaboracionista com a "ilusão colectiva" que embala o país. Enfrentando os lugares-comuns e as vulgatas.

domingo, 4 de fevereiro de 2007

Blogossário - 2

Anonyblog - um blogue criado e mantido por autor(es) anónimo(s). Embora a página normalmente forneça alguma informação acerca do autor, a sua verdadeira identidade não é revelada. Um blogue deste tipo pode ainda ser desenvolvido usando um nickname, ou pseudónimo.

Atom - trata-se de um tipo de web feed, em formato XML, que permite ao utilizador descarregar todas as postagens e alterações feitas à página ou blogue subscritos, mediante o uso de software apropriado (feed reader).

Audio blog - um género de blogue que basicamente publica ficheiros contendo material áudio, tais como podcasts ou musicais.

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sexta-feira, 2 de fevereiro de 2007

Um ano a blogar

O "Boca de Incêndio" completa hoje o seu primeiro aniversário. Para uma visita guiada, embora não exaustiva, dos temas mais em destaque aqui debatidos, remeto para esta postagem. Tinha prevista nova roupagem para o blogue, assinalando a data. Todavia, decidi pensar numa alteração do grafismo para mais tarde. E manter o actual, que serve os propósitos do espaço. Uma das vantagens da publicação num blogue é a ausência de uma política editorial pensada da mesma forma que num jornal ou numa revista. Obviamente, cada blogue tem uma marca, uma orientação, um sinal distintivo. Independentemente do número de colaboradores, da maior ou menor especialização, do caudal das postagens, ou do tipo de registo mais frequente. Este não foge à regra. Existirá enquanto for necessário, o que nada tem a ver com utilidade.

Curtas

A propósito da banalização e do uso afinal particular de certas palavras-chave utilizadas no debate nacional em curso, obrigatório se torna ler um artigo de Pacheco Pereira saído ontem no "Público" e disponível no Abrupto.

O toque

Não há nada menos apropriado para tocar numa obra de arte do que a linguagem crítica, no qual tudo se reduz sempre a alguns equívocos mais ou menos felizes. As coisas estão longe de ser tão compreensíveis ou exprimíveis como geralmente nos querem fazer crer; a maior parte dos acontecimentos é inexprimível e ocorre num espaço em que palavra alguma pisou. Mais inexprimíveis do que qualquer outra coisa são as obras de arte, — seres repletos de mistério, cuja vida perdura junto à nossa vida mortal e efémera.

Rilke, in “Cartas a Um Jovem Poeta”