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quarta-feira, 31 de janeiro de 2007

Diário de um tolo - 14

Ontem estive em Sintra, mais propriamente no Tribunal, onde tinha marcada uma intervenção num julgamento. Apresentei-me no enorme edifício com pontualidade britânica. Pois bem, duas horas e meia depois, e após ter verificado que todos os intervenientes se encontravam presentes, sou chamado à sala. Onde a juíza me informou ter havido uma sobreposição de marcações e que, por esse motivo, a audiência se realizaria na segunda data marcada - quinze dias depois. Fê-lo de uma forma especialmente atabalhoada, defensiva. Pois não ignorava a dimensão do seu erro. Quando dei conta do que se estava a passar, numa primeira fase adoptei a pose b-428: de pé, olhar fuzilador, queixo levantado. Mas percebendo que, embora o movimento possa ter resultados saudavelmente intimidatórios, poderia haver danos colaterais e mesmo "fogo amigo", passei imediatamente para a pose f-5119.2: a chamada lânguida-assassina, resultado de uma ira elaborada, apresentada sob as vestes de um impulso genuinamente sedutor, mas terrivelmente destrutivo. Lembrei então a meritíssima que percorreria 700 km para estar presente na sessão. E que, sabendo que nenhum dos motivos previstos na lei impediria a realização da audiência, posteriormente iria consultar a justificação para o adiamento consignada em acta. Já com a pose citada no máximo da intensidade (e com uma jovialidade extra) acabei por dar o tirinho final: estava a pensar mudar de ramo e abrir uma agência de viagens.
Cá fora - saturado de tanta displicência, tanto desperdício, tanta falta de respeito da Justiça pelos cidadãos, e de um Tribunal pelo patrocínio forense que, segundo a Constituição, é um "elemento essencial à administração da justiça" (art.º 208.) - lembrei-me que estava em Sintra. E não hesitei em dar um pulo até Seteais, um local da minha especial predilecção. E também de Marguerite Yourcenar, que aqui chegou a passar algumas temporadas. Após uma breve digressão, dirigi-me ao miradouro, por trás do grande arco. E sem esperar, vivi um momento único. Algo próximo de uma visão doce, magnânima, inexplicavelmente próxima do que não se conhece, do que se teme, do que se espera, do que se ama. A plenitude intocada da vida mesmo ali, ao meu alcance, devolvendo-me a paisagem transfigurada.

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