Reflexões, notas, impressões, apontamentos, comentários, indicações, desabafos, interrogações, controvérsias, flatulências, curiosidades, citações, viagens, memórias, notícias, perdições, esboços, experimentações, pesquisas, excitações, silêncios.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Elogio de Fausto


Recentemente, passou na RTP um documentário sobre aquilo a que se convencionou chamar de "música de intervenção". Com especial destaque, naturalmente, para os seus intérpretes maiores. A propósito do tema, apeteceu-me lançar uma pequena provocação ao auditório. Que nada tem a ver com a estafada discussão sobre a bondade da designação "intervenção". A qual, confesso, já cheira mal. Não, aqui o propósito é outro. E tem como pano de fundo as razões de uma escolha. As quais vêm já a seguir, à desfilada.
Existem cantores/intérpretes/autores cujo lugar não é, pura e simplesmente, questionável, ou sujeito à subjectividade desgovernada. JOSÉ AFONSO e ADRIANO CORREIA DE OLIVEIRA são os nomes mais óbvios. O último será lembrado mais pela imensa generosidade e combatividade, do que pela música, à excepção de alguns hinos. O primeiro é, simplesmente, o compositor de música popular portuguesa mais importante do séc. XX. E que sobreviverá, mesmo apesar da acção nefasta de alguns epígonos, muitos prosélitos e certos maus divulgadores.
VITORINO é outra figura à parte. E cuja veia criativa parece ter esgotado. Mas que, todavia, não integra a minha playlist actual, sobretudo por duas razões: os temas mais antigos já não consigo ouvir, devido a nostalgite aguda, e os mais recentes não me interessam.
SÉRGIO GODINHO é um caso mais complexo, mas simultaneamente mais simples de explicar: só gosto e só ouço o que fez até meados dos anos 80. Depois disso, prefiro o Serge Gainsbourg no original, embora reconheça o mérito artístico de alguns temas.
Outro problema é JOSÉ MÁRIO BRANCO. O qual mais facilmente me disporei a escutar "ao vivo" do que noutra qualquer situação. Talvez porque a sua música, hoje em dia, inspira mais do que ilumina.
Há alguns nomes cuja lembrança menos pesa. É o caso, por exemplo, de PEDRO BARROSO. Ao ouvir as sua baladas campestres, ocorre-me imediatamente o queijo "tipo" serra. Ou seja, um produto que se faz passar por aquilo que não é: música tradicional. É uma sonoridade que combina bem com uma feijoada acompanhada de um carrascão ribatejano. Seguida de uns versos flatulentos, dedilhados à guitarra e dedicados às moçoilas da região.
Resta então FAUSTO, para incluir na tal minha playlist multiusos. Onde permanece, de pedra e cal. E porquê? Para já, é o único que nunca atou a pedra da ideologia àquilo que se impunha que flutuasse: a sua arte. E foi por causa disto que alguém duvidou do seu posicionamento político? Por outro lado, Fausto assemelha-se mais a um herdeiro da tradição dos jograis e de entremezes, da tradição pícara ibérica. O seu registo vocal é o oposto daquele que se usaria num comício. Denotando uma elegância e uma ironia que escasseiam noutros. Onde coexiste a intensidade artística e o distanciamento. Fausto nunca utilizou a música como suporte para fins proselitistas. Nunca teve preconceitos em usar temas que outros considerariam pouco dignos. Nunca confundiu a solidez da mensagem com a crispação de uma "língua de trapos". Evidenciou um profundo conhecimento da cultura e da história nacionais. E compôs a opus magnum da música popular portuguesa da década de 80: "Por este rio acima". Cada disco seu é diferente de todos os outros, mas nenhum exclui os anteriores. Fausto é o único cujo nome não evoca mecanicamente nenhum adjectivo, sendo ele próprio um. Algo que não é, decididamente, para todos. Em suma, com Fausto sabemos sempre que "Grande, grande é a viagem"...

Sem comentários:

Enviar um comentário