Lá estava ela. Por baixo de uma cómoda, dentro de uma embalagem de papelão que espreitava, no meio do pó e velharias sem significado. Ao princípio, parecia um simples guarda jóias japonês de madeira lacada, puído pelo tempo. Só quando abri a caixinha percebi tudo. Reflectindo os sinais do tempo, dei com o espelho, na face interior da tampa. E nele um ideograma desenhado, representando o monte Fuji. E também os dois pequenos compartimentos, lá dentro. Um deles fechado, mas com uma tampinha, contendo o mecanismo, ferrugento e já solto. Por cima, havia antes uma bailarina em miniatura que rodava quando aquele era accionado. E que agora lá não estava. A outra divisória, aberta, ainda forrada com veludo vermelho. O espaço ideal para guardar grandes segredos e pequenos valores. Tomado por um sobressalto, cuja origem ainda não era clara nessa altura, peguei novamente na caixa, com cuidado. A trepidação produzida causou um som metálico, quase imperceptível. Como um débil suspiro de quem esteve encerrado anos e anos num recanto esquecido da memória e do tempo. Condenado a uma inutilidade cuja rejeição foi tragicamente silenciada. E que, por isso mesmo, se manifesta ao menor pretexto. A emoção crescia. Peguei no pequeno manípulo usado para "dar corda", na parte inferior da caixa. Rodei duas vezes. Surpreendido, dei conta que a fina peça metálica, incrustada no parafuso cujo movimento faz girar a engrenagem, rodava timidamente, a espaços. Mas não o suficiente, claro, para um funcionamento "normal" do mecanismo. Faltava ainda o toque de Midas. Nesse momento, nem hesitei: umas gotas de óleo em spray fizeram o milagre. E eis que as patilhas de metal percutidas pela bobine dentada começaram a mover-se. A melodia começou. Ou seja, meia dúzia de sons encadeados, que tantas vezes tinham preenchido a minha fantasia de criança. Nos segundos iniciais triunfou a excitação de ter participado num milagre. Mas algo mais estava para vir. Senti-me empurrado bem para o centro dessa infância, para as emoções completas, os gestos completos, para uma alegria brutal, indesmentível, gratuita. Para a voragem do que "ainda já não é". Incólume, à beira do segredo triunfante. De frente para a face indestrutível do poema.
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