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quinta-feira, 9 de abril de 2009

Tábua de marés (39)

Ice Concert
Percussão: Terje Isungset (http://home.online.no/~isungz/)
Voz: Lena Nymark
Pequeno Auditório do TMG, 27 de Março

No início da carreira deste músico norueguês vamos encontra-lo como percussionista dos Groupa, uma banda que cultivava uma sonoridade folk, com muita flauta e violino de permeio. Com a gravação de “Reise”, o seu primeiro álbum a solo, Terje inicia uma nova etapa do seu percurso, utilizando instrumentos feitos de gelo. Em 1999 surgiu “Floating Rythms”, uma gravação ao vivo. Em 2002, o registo “Iceman Is” é a obra inaugural da série Icemusic, uma sequência de discos onde as sonoridades obtidas a partir de instrumentos de gelo dominam , mas que também poderia ser encarado como um tipo de música inovador. Seguiram-se mais quatro discos: “Ice Concerts”, “Two moons”, “Hibernation” e “Middle of mist”. Nesse período fundou a editora independente All-Ice Records, em 2005, dedicada a este tipo de música. Mas Terje não faz a coisa por menos. As gravações de originais são efectuadas em iglos transformados em estúdios, obrigatoriamente mantidos a temperaturas inferiores a zero. O jazz glaciar deste músico não deixa ninguém indiferente. O concerto dividiu-se em duas partes distintas. A primeira, o “Ice Concert” propriamente dito, onde o músico pode experimentar de variadas maneiras os diferentes instrumentos, criados exclusivamente para este espectáculo, não é de mais salientar: desde o Tambor de gelo até à trompa, passando pelo “Gelofone”. Uma sonoridade introvertida e que acompanha em pleno a efemeridade da matéria-prima usada, originando um momento elegíaco. Um apelo do inicio dos tempos. Onde a água sólida é como que um bloco criativo, enquanto o som é esculpido e pulverizado, percutido de infinitas maneiras e transportando consigo um murmúrio cristalino, da ordem do êxtase. Ou seja, a intervenção hipnótica do gelo, entre comedidos jogos rítmicos e tons que parecem ficar suspensos num fluxo que ameaça libertar-se, numa estranha irrisão de pureza. As vocalizações de Lena Nymark, por outro lado, asseguram o degelo no meio da litania glaciar. Seguiu-se uma segunda parte, “O Tributo à Natureza”, onde Terje executou vários temas, recorrendo à bateria e um sem número de instrumentos de percussão criados por si. Utilizando também, no último tema, novamente à trompete de gelo. Devido à variedade instrumental, foi visível o virtuosismo do músico e a sua mestria na âmbito daquilo que se convencionou chamar de criação de “paisagens musicais”. Aparecendo como um “Yeti” com propriedades xamânicas no meio das fontes, das folhas das árvores, do crepitar das fogueiras, dos animais em corrida, dos cristais de neve que se descobrem apenas quando observados ao microscópio. Pegadas jurássicas que ficaram, tenho a certeza, marcadas de forma indelével em quem assistiu a este espectáculo memorável.

Publicado no jornal "O Interior", em 2 de Abril

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