Reflexões, notas, impressões, apontamentos, comentários, indicações, desabafos, interrogações, controvérsias, flatulências, curiosidades, citações, viagens, memórias, notícias, perdições, esboços, experimentações, pesquisas, excitações, silêncios.

sábado, 15 de março de 2008

O divino cordeiro

Em tempos, durante um fim-de-semana que passei numa vila do Alto Minho, a certa altura houve um jantar em casa da família dos meus anfitriões. Antes do repasto, como convém, perguntaram-me se gostava de anho, pois estava a assar. Fiquei em pânico. Ocorreu-me que, por aquelas bandas, usassem na gastronomia espécies venatórias incomuns. Ou que tudo não passava de uma praxe. Pois acreditem que mantive a presença de espírito suficiente para ir à casa de banho estimular os neurónios, até dar com uma pista que me fizesse chegar até ao malfadado anho. De repente, foi-se chegando uma hipótese, como quem não quer a coisa. Quando olhei para ela, ali, à minha frente, reconheci a solução: AGNUM! Eureka! O latim, isso mesmo, caros amigos! Foi através do latim que lá cheguei! A meias com uma expressão bíblica bem conhecida: agnus dei, o cordeiro de Deus. E como no norte a tradição ainda é o que era, dizem, a corruptela não andaria longe do étimo. Trocando por miúdos, eis que se aproximava, a passos largos, um borrego assado. A interjeição que se seguiu deve ter sido audível em toda a casa, pois alguém foi à porta saber se alguma coisa não estava bem. Passados uns minutos, fui ter com os convivas e, com o ar mais natural deste mundo, atirei: "Anho? Adoro! Com batatas assadas ou com arroz no forno?" Confesso que arrisquei. E se fosse mesmo um unicórnio? Para outro momento ficarão algumas histórias em que não me saí tão bem, para compensar. E também porque me ocorre sempre um excerto do "Poema em linha recta", de Fernando Pessoa/Álvaro de Campos, (aqui na íntegra):
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana / Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;/ Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia! / Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam. / Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil? / Ó príncipes, meus irmãos, // Arre, estou farto de semideuses! / Onde é que há gente no mundo?
Por falar no heterónimo, o repasto foi devidamente acolitado com um verde alvarinho tinto (ou pedral, na Galiza). Nem podia ser de outra maneira. Ah, e o anho estava realmente celestial.