Começo assim: há um género de blogues que me irrita particularmente. Ou não será que particularmente me irrita? A resposta não é tão óbvia como parece. A primeira possibilidade afere um estado de humor, digamos, privado, circunspecto. Tem a ver sobretudo com o sujeito, com uma idiossincrasia para além do manto da razão. Uma desforra íntima que não se expõe demasiado e cuja satisfação auferida é proporcional à reserva com que se manifesta. A segunda hipótese, o advérbio antes do pronome - particularmente me irrita - ao invés, diz respeito a um atributo específico do objecto. Qualquer coisa que ele possui, nem de propósito, para me tirar do sério. É aquela coisa, aquela e só aquela, pelo menos naquele momento. Que, por um acaso, ou porque possui um dom especial, impressiona desfavoravelmente o sujeito, causando-lhe uma perturbação, uma alteração especial dos seus humores. E acontece que este não esconde essa urticária. Pelo contrário. Busca mesmo, nessa particular causalidade, mais um pouco de sal para a sua hubris. E tudo isto a propósito de quê? Ah, dos tais blogues que... Passo então a explicar. No "Vermelho e o Negro" consta uma tipologia dos blogueiros, onde se arrumam as várias categorias de acordo precisamente com o seu karma blogosférico. A essa classificação já aqui fiz uma breve referência. Ora, pegando na lista, podemos e devemos combinar as várias categorias, criando híbridos decerto mais próximos da realidade. Existe um especial, que é o tal que irrita. Resulta da mistura básica entre o aristocrata culto e o especialista. Juntemos-lhe um pozinho do wikipedista e mais um cheirinho do narcisista. Dissolver bem e levar ao forno. Chamemos-lhe, à falta de melhor, o coleccionador. Como poderei defini-lo? Um cibernauta que se vê a si próprio como muito culto. E essa suposição confere-lhe a justificação para o seu hermetismo, a sua secura, o seu ar esquivo, a sua superioridade. O coleccionador é sobretudo um depositário de informação. Que a vaidade obriga a desenrolar num blogue, incluindo os respectivos artefactos, como quem exibe uma caderneta de cromos ou um profuso curriculum. E que a consciência obriga a diluir num meio como a blogosfera, que para a maioria é interactivo, haja ou não comentários, menos para o coleccionador. Que não está de todo interessado em descobrir com os outros, em pôr o seu saber à prova. Que força uma desigualdade fundamental, que impede a ironia e a possibilidade do erro. No fundo ele já sabe tudo, ele sempre soube tudo, e o único que espera dos outros é o temor reverencial perante tantos nomes, tantos discos, tantos espectáculos, tantos filmes, tantos livros, tanta, tanta, tanta informação que um ego sobrecarregado é incapaz de digerir com alguma consistência! E nessa medida, só lhe resta a fuga para a frente, a vertigem autofágica, a deriva relativista. Para o coleccionador, manter um blogue é sobretudo uma questão de afirmação e expansão territorial do ego. Criando um espaço que parece um carrossel, mas no fundo é um deserto. Um local onde não há espessura, densidade, tempo. Onde não existe espanto com o que não se conhece e humildade com o que se conhece. Não! Ele compraz-se em mostrar a sua galeria de ressonâncias dilectas. E os gostos que exibe são invariavelmente definitivos e circulares, usando um tom insuportavelmente directivo, quase totalitário, na forma como mostra a sua colecção. Nunca a dúvida ou a hipótese experimental se deixam ver. O coleccionador acaba por tornar indiferentes os objectos e personalidades do mundo da cultura que refere, pois revela-os a todos da mesma maneira: num tom vagamente elegíaco, que se faz passar por objectivo. Mas não esqueçamos que ele é um arquivador nato. Faz questão de nos mostrar as suas paisagens, mas nunca sai do seu habitáculo, nunca arrisca um milímetro. Faz questão de nos impressionar com a vastidão do seu conhecimento. Mas cedo se percebe que aquilo que tem para exibir é somente a sua colecção de lápides. É que não basta colocar a assistência de boca aberta com a imensidão de objectos que saem da cartola. É fundamental - acaso se leve a honestidade intelectual com alguma seriedade - ligar o improvával, relacionar o impossível! É esse passe, esse voltear à beira do abismo, que distingue o feirante do mágico. O coleccionador conhece muitas coisas, tem muitas ideias, se é que se pode falar assim. Mas ter muitas ideias é exactamente o oposto de ter um pensamento. No fundo, o coleccionador não passa de um arquivo morto. É esse o seu drama.