Tem ecoado na blogosfera, e não só, uma das polémicas mais interessantes e virulentas dos últimos tempos. Tudo começou com um artigo de opinião de Pedro Magalhães no "Público" (7.1.2008), intitulado "Liberalismo de pacotilha". A resposta não tardou, pela mão de Vasco Pulido Valente (link só para assinantes), com o notável texto "Ordem e muito respeitinho". A questão de fundo é naturalmente a recente fúria regulamentadora do Governo - maxime a lei do tabaco - e a actuação da ASAE. Já aqui disse o que pensava sobre este assunto. Todavia, os argumentos trazidos por Pedro Magalhães revelam um agastamento que não lhe conhecia e um tom punitivo que deixou de surpreender. Adiante. Ora bem, quais os argumentos enganosos apontado por P. M. aos "liberais de "pacotilha"?
1º Invocam o interesse cultural, por tudo e por nada, para defenderem a "sua" tradição. Chega mesmo a equipará-los aos turistas do Norte da Europa que nos visitam todos os anos: o "pitoresco" é muito giro para visitar e saber que existe, desde que sejam os outros a levar com ele todos os dias.
2º Encaram determinadas proibições legais como um invariável atentado à liberdade, ou até um primeiro passo na abolição de direitos políticos fundamentais.
3º Na qualidade de "fatalistas", aceitam as limitações à liberdade enquanto cultura cívica e não por imposição legal. P.M. conclui que, no fundo, desejam que tudo fique como está. Aliás, recomenda mesmo aos tais liberais uma visita aos países anglo-saxónicos, para verem como a lei é respeitada e cumprida, mesmo que doa.
Ora, creio que os primeiro e terceiro tópicos de discussão trazidos pelo autor não são sequer sérios. Comungam do mesmo truque retórico, que pode ser definido como a afirmação do consequente. Isto é, uma falácia em que se ignoram outras causas a partir da ocorrência de um efeito. A fórmula seria: P, então Q; Q; então, P. Exemplo: "se estiver a chover (P), o correio atrasa-se (Q). O correio atrasou-se (Q), então está a chover (P). O segundo, pelo contrário, é motivo de algumas reflexões. Quer por si próprio, quer pelo que arrasta consigo. Obviamente, P.M. posiciona-se do lado "progressista" da opinião pública. Do outro lado, por exclusão de partes e unicamente por conveniência narrativa, coloca os "liberais". Os quais, para o efeito pretendido, subsume aos conservadores. Esquecendo-se que, hoje em dia, ser liberal ou conservador não é o mesmo e também já não é o que era. Mesmo que as categorias coincidam, o que é possível, a regra é que assim não aconteça. Ser conservador é quase sempre "uma forma de cepticismo", como dizia Borges. Ser liberal é uma qualidade compósita, que vai beber às referências mais díspares. Desde Max Stirner a Gianni Vattimo. De um modo geral, prezam a independência, a responsabilidade individual. Desconfiam da manipulação e do autoritarismo. São difíceis de arrumar no emergente espectro político de séc. XXI. É precisamente isso que confunde e irrita o articulista. A propósito do paternalismo estatal, PM sacou da cartola Stuart Mill, que identifica como o mentor dos liberais, o que faz com um subtil tom depreciativo. Conclui então que as limitações à liberdade são legítimas, desde que os comportamentos envolvidos sejam "nocivos" para os outros. De acordo, se as regras da civilidade ou o direito penal apreenderem tal abuso de direito. Todavia, para P.M. o atributo "nocivo" é um saco sem fundo: equipara o consumo do tabaco em locais públicos à condução sob efeito de álcool e ao estacionamento selvagem. Este raciocínio é perigoso. Pode fundamentar a responsabilidade penal objectiva. Mete no mesmo saco a criação concreta de um risco para a vida e integridade física do próprio e de terceiros, ou a infracção a regras do código da estrada tendentes à liberdade de circulação e a suspeita, não comprovada cientificamente, de que o fumo passivo pode causar doenças. É claro que o fumo em espaços fechados incomoda os que não fumam (a mim também, pois deixei de fumar; aliás, por falar nisso, se fumar é uma questão privada, deixar de o fazer também é). Para contentar gregos e troianos, bastaria uma repartição racional dos espaços, sem estigmatizar ninguém. Ora, culminando o seu raciocício, P.M. defende, no limite, que se proíbam comportamentos que têm consequências nocivas exclusivamente para aqueles que os adoptam, sem que isso implique necessariamente uma colisão com a liberdade de escolha individual. Chegados a este ponto, qualquer convergência é impossível. Repare-se que, de acordo com esta bitola totalitária, poderíamos perfeitamente aí incluir, por exemplo, a edição de livros "impróprios", a exibição de arte "decadente", o consumo de qualquer tipo de estupefacientes, a obesidade, os piercings, o mau hálito, o Luiz Pacheco, o campismo "selvagem", as sandes de coiratos, a pornografia, os pêlos do nariz, a partilha de ficheiros na net, os cultos esotéricos, os ovos frescos, os míscaros, etc. E é precisamente aqui que há que saber ser intransigente. Não reconhecer qualquer legitimidade ao Estado para nos dizer que não podemos fumar um charro, comer uma arrozada de míscaros, ou que tenhamos que acreditar, impávidos e serenos, no marketing quotidiano do primeiro-ministro, dos seus homens de plástico e respectivas réplicas no Bloco central, todos inodoros, insípidos, sem convicções, permanentemente monitorizados por legiões de spin doctors, zelosos em erradicar tudo o que sinalize a autonomia individual, que substituíram a política pela TV Shop, os camaradas pelos sócios, a grande mentira pelas pequenas meias verdades. Em suma, saber opor à sanha totalitária a virtude do vício e a delícia do erro.
Ver anterior
1º Invocam o interesse cultural, por tudo e por nada, para defenderem a "sua" tradição. Chega mesmo a equipará-los aos turistas do Norte da Europa que nos visitam todos os anos: o "pitoresco" é muito giro para visitar e saber que existe, desde que sejam os outros a levar com ele todos os dias.
2º Encaram determinadas proibições legais como um invariável atentado à liberdade, ou até um primeiro passo na abolição de direitos políticos fundamentais.
3º Na qualidade de "fatalistas", aceitam as limitações à liberdade enquanto cultura cívica e não por imposição legal. P.M. conclui que, no fundo, desejam que tudo fique como está. Aliás, recomenda mesmo aos tais liberais uma visita aos países anglo-saxónicos, para verem como a lei é respeitada e cumprida, mesmo que doa.
Ora, creio que os primeiro e terceiro tópicos de discussão trazidos pelo autor não são sequer sérios. Comungam do mesmo truque retórico, que pode ser definido como a afirmação do consequente. Isto é, uma falácia em que se ignoram outras causas a partir da ocorrência de um efeito. A fórmula seria: P, então Q; Q; então, P. Exemplo: "se estiver a chover (P), o correio atrasa-se (Q). O correio atrasou-se (Q), então está a chover (P). O segundo, pelo contrário, é motivo de algumas reflexões. Quer por si próprio, quer pelo que arrasta consigo. Obviamente, P.M. posiciona-se do lado "progressista" da opinião pública. Do outro lado, por exclusão de partes e unicamente por conveniência narrativa, coloca os "liberais". Os quais, para o efeito pretendido, subsume aos conservadores. Esquecendo-se que, hoje em dia, ser liberal ou conservador não é o mesmo e também já não é o que era. Mesmo que as categorias coincidam, o que é possível, a regra é que assim não aconteça. Ser conservador é quase sempre "uma forma de cepticismo", como dizia Borges. Ser liberal é uma qualidade compósita, que vai beber às referências mais díspares. Desde Max Stirner a Gianni Vattimo. De um modo geral, prezam a independência, a responsabilidade individual. Desconfiam da manipulação e do autoritarismo. São difíceis de arrumar no emergente espectro político de séc. XXI. É precisamente isso que confunde e irrita o articulista. A propósito do paternalismo estatal, PM sacou da cartola Stuart Mill, que identifica como o mentor dos liberais, o que faz com um subtil tom depreciativo. Conclui então que as limitações à liberdade são legítimas, desde que os comportamentos envolvidos sejam "nocivos" para os outros. De acordo, se as regras da civilidade ou o direito penal apreenderem tal abuso de direito. Todavia, para P.M. o atributo "nocivo" é um saco sem fundo: equipara o consumo do tabaco em locais públicos à condução sob efeito de álcool e ao estacionamento selvagem. Este raciocínio é perigoso. Pode fundamentar a responsabilidade penal objectiva. Mete no mesmo saco a criação concreta de um risco para a vida e integridade física do próprio e de terceiros, ou a infracção a regras do código da estrada tendentes à liberdade de circulação e a suspeita, não comprovada cientificamente, de que o fumo passivo pode causar doenças. É claro que o fumo em espaços fechados incomoda os que não fumam (a mim também, pois deixei de fumar; aliás, por falar nisso, se fumar é uma questão privada, deixar de o fazer também é). Para contentar gregos e troianos, bastaria uma repartição racional dos espaços, sem estigmatizar ninguém. Ora, culminando o seu raciocício, P.M. defende, no limite, que se proíbam comportamentos que têm consequências nocivas exclusivamente para aqueles que os adoptam, sem que isso implique necessariamente uma colisão com a liberdade de escolha individual. Chegados a este ponto, qualquer convergência é impossível. Repare-se que, de acordo com esta bitola totalitária, poderíamos perfeitamente aí incluir, por exemplo, a edição de livros "impróprios", a exibição de arte "decadente", o consumo de qualquer tipo de estupefacientes, a obesidade, os piercings, o mau hálito, o Luiz Pacheco, o campismo "selvagem", as sandes de coiratos, a pornografia, os pêlos do nariz, a partilha de ficheiros na net, os cultos esotéricos, os ovos frescos, os míscaros, etc. E é precisamente aqui que há que saber ser intransigente. Não reconhecer qualquer legitimidade ao Estado para nos dizer que não podemos fumar um charro, comer uma arrozada de míscaros, ou que tenhamos que acreditar, impávidos e serenos, no marketing quotidiano do primeiro-ministro, dos seus homens de plástico e respectivas réplicas no Bloco central, todos inodoros, insípidos, sem convicções, permanentemente monitorizados por legiões de spin doctors, zelosos em erradicar tudo o que sinalize a autonomia individual, que substituíram a política pela TV Shop, os camaradas pelos sócios, a grande mentira pelas pequenas meias verdades. Em suma, saber opor à sanha totalitária a virtude do vício e a delícia do erro.
Ver anterior
Sem comentários:
Enviar um comentário