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sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

Desobediência civil (1)

1. Dois artigos de opinião recentemente publicados no "Público" expressam uma preocupação comum com a ameaça infligida pelo Governo às liberdades e à independência dos cidadãos. São eles "Sócrates e a liberdade", por António Barreto (6 de Janeiro) e " Primeiro-ministro ou 'personal trainer?", de Helena Matos (7 de Janeiro). Barreto exprime a sua apreensão pelo higienismo em marcha e a dimensão do autoritarismo e controlo do Estado sobre os cidadãos: O Primeiro-ministro José Sócrates é a mais séria ameaça contra a liberdade, contra autonomia das iniciativas privadas e contra a independência pessoal que Portugal conheceu nas últimas três décadas.TEMOS DE RECONHECER: tão inquietante quanto esta tendência insaciável para o despotismo e a concentração de poder é a falta de reacção dos cidadãos. A passividade de tanta gente. Será anestesia? Resignação? Acordo? Só se for medo... Helena Matos faz um retrato implacável do Primeiro-ministro, aludindo ao seu jogging como uma metáfora do seu estilo de governação, o erzatz do actual momento político : Dir-se-á que era tempo desta geração chegar ao poder. Claro que sim. Mas o que nos sobrou não foi um líder com convicções políticas ou um homem temperado pelos factos. Foi sim um produto da máquina partidária. E por isso Sócrates governa como corre: começou por correr vinte minutos, agora faz meia maratona. A própria concepção que tem do poder é a dum personal trainer. E o seu objectivo é transformar o país numa espécie de spa. Sócrates trocou o socialismo pela saúde. As polícias políticas pela ASAE e pelas balanças. Transformou os fumadores numa espécie de inimigo público. Os gordos virão a seguir. (...) Sócrates tem de correr, correr cada vez mais. Porque acredita que o impulso de cada uma dessas passadas se pode tornar no movimento perpétuo que o manterá no poder.
2. Barreto coloca a hipótese do retorno do fascismo. A questão não é despropositada. Bem pelo contrário. Nas sociedades do espectáculo difuso (Debord) em que vivemos, o (neo)fascismo dispensa o Estado totalitário, mas não o totalitarismo. Passa bem sem a censura, mas não sem o medo. Não pretende restaurar uma ordem pré-iluminista, mas uma utopia eugénica, onde as diferenças são subtilmente anuladas. É-lhe indiferente a submissão, mas não floresce sem o culto narcísico. Não nega as liberdades, mas administrativiza-as. Neste cenário hedonista, o Poder decide que somos todos iguais. Pois a ânsia do consumo é uma ânsia de obediência a uma ordem não enunciada. Pois nunca a diferença foi tão aterradora como neste período de tolerância. O Estado sabe tudo acerca dos cidadãos, dado que é no seu interesse que o faz. Dá-lhes bons conselhos, protege-os do risco, da tentação, do vício. Sufoca-os com o abraço do urso. O preço desta vigilância assistencial é o controlo. A lei do tabaco é só a etapa mais visível e imediata do programa sanitário. As investidas fiscalizadoras da ASAE, embora compreensíveis à luz do combate à contrafacção e em prol da saúde pública, são muitas vezes provocadoras e humilhantes para os visados. O espectáculo hollywoodesco das máscaras e das correrias tem fins de prevenção geral para toda a nação. É o papão que faz tremer de medo um país pré-higiénico, pré-normalizado. Tudo isto para acabar com a chamada economia paralela. Aquela que não gera tributação. Refiro-me à rede de pequenos serviços, muitas vezes familiar, à produção de subsistência, ao pequeno comércio de rua, muitas vezes ligado às tradições culturais, festivas e gastronómicas. Tal como a obra de Kafka demonstra, o verdadeiro prazer do esbirro ou do polícia está em incomodar os outros por razões fúteis. Não por motivos legítimos, palpáveis, reconhecíveis. É precisamente a gratuitidade da ameaça, o tom aleatório do medo, o que torna o totalitarismo tão absurdo quanto real.
3. W. H. Auden, poeta e escritor inglês, viveu na primeira metade do séc. XX. Antes da ascensão do nazi-fascismo, integrava os círculos fabianos e o grupo progressista de Bloomsbury, onde pontuava Virgínia Woolf, H. G. Wells e Bernard Shaw. Desiludido com a traição de Munique, o apaziguamento que se lhe seguiu e o Pacto de não agressão Hitler-Estaline, foi para os Estados Unidos, logo no início da Guerra. Onde escreveu um extraordinário e profético poema, deveras apropriado para os dias que correm:
Rostos ao longo do bar/Agarram-se ao dia mediano;/As luzes nunca deverão apagar-se,/A música deverá sempre tocar, (...) Com medo que descubramos onde estamos,/Perdidos numa floresta assombrada,/Crianças com medo da noite,/Que nunca foram boas ou felizes.

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