Tinha ido a mais uma sessão perfurante ao seu dentista. Depois da conversa de circunstância, veio o momento em que o médico desatou a fazer perguntas imediatamente após a empregada ter colocado o tubo da refrigeração na sua boca. Ocasião pois para exercitar onomatopeias expressivas e linguagem gestual básica. Passado este supremo momento comunicacional, vieram as sondas, as brocas, umas coisas que apitam por tudo e por nada, outras que aquecem, outras ainda de utilidade desconhecida mas certa. No preciso momento em que os neurotransmissores começaram a dar os sinais de alarme, ouve-se na rádio a voz de Robert Plant, no celebérrimo tema "Stairway to Heaven", dos Led Zeppelin. Acto contínuo, o dentista começa a trautear a música, num karaoke esforçado, mas sincero. Primeiro entrou em pânico. Vieram-lhe à lembrança imagens de uma conhecida sequência do filme "O Homem da Maratona", onde um ex-torcionário nazi foragido - por sinal dentista e uma réplica de Mengele - arranca uns dentitos a sangue frio ao protagonista, interpretado por Dustin Hoffman. O problema é que aí também havia "ambiente sonoro", embora a música fosse outra: Wagner, comme il faut. Por outro lado, recordou os momentos felizes que passou ao som daquela inesquecivel balada, na sua adolescência. Ao fim ao cabo, associada às maiores "tauladas" que tinha apanhado, num certo período. "Será que o dentista tem um sentido de humor rebuscado?", "O que irá ele fazer a seguir?", as perguntas sucediam-se na sua cabeça. Acabou por encolher os ombros. Afinal, o trautear era a forma possível e inocente que o outro encontrou para quebrar a ansiedade, uma maneira indirecta de lhe dizer: "Vá, isto é um instantinho, não vai doer nada". Claro, só podia ser isso. Embora a ironia da situação fosse por demais evidente... Foi nessa altura, que um sono pesado se abateu sobre ele, diluindo-se o branco das paredes numa vertigem incandescente que o puxava para longe dali. Quis reagir, mas era já impossível. Por último, ainda conseguiu distinguir o sinal que o médico dirigiu à empregada e a resposta dela: "Jawohl, herr doktor"...
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