8.
(Confusão total. Escuro. O palco desmorona-se, tornando-se um cenário de guerra: montes de cascalho revolto, pedaços de cimento, vigas de aço, peças de automóvel, escombros vários, focos de fumo entre o cascalho e o sol a despontar. ANA permanece no fundo de uma trincheira em posição fetal, com as roupas ensopadas no seu próprio sangue, parecendo inconsciente ou morta. Silêncio. O sol bate-lhe na face e começa a mexer-se. Boceja e espreguiça-se. Ergue-se e senta-se numa trave de madeira. Vai caminhando até ao limite do bunker e encara a audiência)
ANA
O meteorologista anunciou trovoada para hoje, mas como podem ver, nem uma nuvem se vê no céu. Esses meteorologistas, chamando-se a si próprios todo o tipo de nomes engraçados como cientistas e assim... Nunca confiei numa palavra do que dizem, tão fiáveis como a dos políticos. Vocês deviam fazê-lo também. De qualquer forma, gosto de surpresas. E também vocês, ou não?
(Regressa ao bunker, tentando pôr um pouco de ordem. Olha em volta, à procura de algo)
Onde estão vocês que não vos vejo? A esconderem-se de mim outra vez? Vá lá! Mário! Júlia! Vítor! Acordem! Não irei aí acima! Quero-vos aqui em baixo já, pois já estão atrasados para o trabalho! Venham cá! Pelos vistos sou a única não está a fazer gazeta hoje. Vamos! Acordem de vez! E tu onde estás, bichano?(chamando um gato) Tenho aqui a comida especial para ti! Onde te meteste?
9.
(um som ténue de uma batida fá-la parar, olhando com receio em volta. As batidas aumentam gradualmente, até se perceber que é um helicóptero. O som vai aumentando de volume, elevando-se até ser quase insuportável. Um vento forte sacode o palco espalhando os escombros. Entra MÁRIO pelo lado esquerdo, vestido com uniforme militar e mochila, trazendo um rádio e uma dúzia de rosas.
MÁRIO
(comunicando via rádio)
Meu Deus! Não é possível! Que horror! Todos mortos! P’ra frente!
ANA
(Vendo Mário)
Mário! Chegaste cedo! Ainda não são oito! Mas está bem, aproxima-te. Senta-te aí e bebe um café. Estarei pronta dentro de um minuto.
(Volta-se para o Mário e sorri. Este passa por ela e dirige-se para a saída do palco)
Mário, estás bem? Estás a olhar-me de modo estranho. Para onde vais?
MÁRIO
(Empurrando o cascalho à volta e falando para o rádio)
Penso que ela tem também o gato
ANA
(vira-se de costas para Mário e começa a despir-se)
O que disseste acerca do gato, Mário? Não te ouvi bem. É bom ver-te de novo, pois senti muito a tua falta. Esta casa está mais silenciosa do que um cemitério. Será um alívio sair daqui
(Mário coloca as rosas na linha do abrigo e sai pela esquerda.)
Querido, porque não vamos hoje ao cinema? Não te apetece? Estreou agora um filme sobre um médico psiquiatra que consegue trazer os seus doentes de volta à realidade.
(o som do helicóptero aumenta, e depois diminui até desaparecer)
Parece ser fascinante! Chama-se “Despertares”! Parece que o Robin Williams também participa! Que grande actor! Os críticos... Mário? Mário, estás a ouvir-me? (volta-se) Mário? Onde vais? (espreita por cima do abrigo)
(luz de palco fade out, luzes do abrigo fade in. Ana coloca-se no cimo do abrigo, coberta com trapos ensanguentados. Ouve-se um sussurro)
Mas para onde foi ele? O que lhe deu? Estranho… (perturbada) Júlia! Vítor! Quero que desçam, já! Onde diabo estão vocês? Não consigo ver!
(confusa) Cercam-me as trevas! Vítor! Cheira-me a algo podre por aqui e. Ajudem-me! Para onde foram todos? Deviam saber que não se pode confiar nos meteorologistas! Oiçam, as coisas não são tão más como as pessoas as pintam. Reparem no seu lado bom. Está um dia magnífico! Mentiram-vos, como sempre! Eu já não acredito neles! E a vida continua, sabem? Nada tem um fim. Eu atravessarei o vosso silêncio, esconder-me-ei atrás do vosso rosto, sem retorno. Bem sei como é doloroso, mas olhem para mim, oiçam-me! Assim ficarei. Mesmo depois de as luzem se apagarem. Ficarei! Mil estrelas contemplarão o vosso sono! E agora, podem ir!
(Sai em direcção ao público. Luz sobre o abrigo.)
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