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6.
(Numa sala de aula)
MARIA
Sou realmente imunda. E feia. E estúpida. Toda a gente me odeia. Sou uma fraude, uma mentirosa, e detesto o meu cabelo. Juro que vou rapá-lo qualquer dia!
(O Professor Verde ergue-se do cadáver do Sr. Verde)
PROFESSOR VERDE
Maria! Mas é atroz! Lá está ela outra vez!
MARIA
(chorando)
Sôtor. Bolas! Oh, não estava aqui! Não sei. Não o estava a ouvir. O que disse?
PROFESSOR VERDE
Mas que rapariga tão perturbada! Vou repetir. Talvez ela aprenda desta vez.
(vai buscar um chicote)
MARIA
Sim, sôtor. Não terei mais pensamentos dispersos.
(gritos de dor)
Não terei mais pensamentos dispersos
(gemidos de aflição)
Não terei mais pensamentos dispersos
(em pânico)
Não terei mais…
(exausta)
PROFESSOR VERDE
Oh! Apagarei este foco de contaminação para sempre deste mundo. Em tua honra, ó grande Platão.
(bate-lhe)
MARIA
Oh, Sôtor , mas o que fiz eu!
(Escuro)
7.
(Num hospício)
DR. VERDE
É uma história terrível. Badalada por todos os jornais. Brincar ao cato e ao rato com raposas do deserto. A inocente rapariga atraiu a sua piedade para assim se deixar possuir. Que visão pavorosa. Já vi várias crianças com todo o tipo de psicoses, irrealidades, alucinações fantásticas. Mas, comparadas com Maria, pouco representam. Nem sei porque lhe dei tanta atenção. Nunca o deveria ter feito. Deveria tê-la tratado como aos demais. Cingir-me ao meu trabalho e pouco mais. Mas ela é um caso invulgar. Estão a ver, nem mesmo qualquer indício consegui descobrir que demonstrasse que ela seja mentalmente apta em qualquer parcela da realidade. Quando um paciente escapa a qualquer diagnóstico que lhe possa aplicar, como o poderei sujeitar a uma terapia arbitrária. Como poderei ajustar o sintoma à cura, se não tenho um ponto de referência de onde possa parti? Estão a ver, o que ela vê é diferente do que todos, vós ou eu, vemos. Por exemplo: esta luz para todos é luz, mas para a Maria poderia ser um sapato valho, um sentimento de piedade, o cheiro do alcatrão quente, uma palavra rude, um gesto frio, o sabor da carne assada, qualquer coisa. Este fantasmagórico erro de percepção não nasceu com ela, pois criou aos poucos um repertório de sensações a partir de onde extraiu o seu erro e a sua confusão. O mundo tornou-se para ela uma realidade distorcida. O único propósito do seu comportamento é a violência. Ela não só mata, como ainda desfaz escrupulosamente as suas vítimas em pequenos pedaços, como uma mãe cortaria um bife para dar ao filho. Ela não tem a capacidade fundamental para separar o real do ilusório. O que ela vê como fantasia é frequentemente uma perigosa e escaldante realidade. A realidade encara-a o mais das vezes como uma cortina ou um chão gélido. Se eu pudesse retirar-lhe essa violência, seria dócil. Uma lunática, mas uma lunática inofensiva.
MARIA
(aos pulos na cama, falando com a toalha pendurada na cadeira)
Tu aí! Levanta-te! Vamos! Quero falar contigo!
DR. VERDE
Vêem. Ela fala para formas intangíveis ou inanimadas como se fossem pessoas. Só de vez em quando poderão fazer com que ela fale directamente para vocês e responda às vossas perguntas. Mas é pura obra do acaso se ela vos escolher para serem reais nesse dia.
MARIA
Diz-me qualquer coisa, por favor! Peço-te. Responderei se falares comigo.
DR. VERDE
Maria! Olá, Maria!
MARIA
Oiço-o! Sim, afinal fala! Sou a Maria!
DR. VERDE
Para aqui, Maria!
(aparte)
Ela realmente não vê, pois age como se fosse cega. Ainda que de facto o seu desequilíbrio possa ir mais além, os sentidos funcionam normalmente ao nível local. E chegou o momento de aplicar esses sentidos ao cérebro que, creio, foi seriamente afectado.
MARIA
(voltando-se com uma raiva dirigida ao Dr. Verde)
Não, você é o único que foi afectado, caro senhor, forçando o mundo a acreditar nas suas sombras. Consigo ver bem melhor do que você, não sou cega. Não falarei consigo, como vê, pois não está previsto no manual. Mas acontece que sou uma filósofa e agora apetece-me conversar com as pessoas. Calem-se de vez ó actores e esperem a vossa deixa. O vosso melodrama causou-me uma indigestão e as vossas actuações estiveram arredadas do mundo real - morto no texto, irreal na vossa voz. Os médicos são sempre personagens entediantes. Sempre! Odeio o Tchekov!
(saca a faca de mato e golpeia o Dr. Verde até à morte deste)
Reflexões, notas, impressões, apontamentos, comentários, indicações, desabafos, interrogações, controvérsias, flatulências, curiosidades, citações, viagens, memórias, notícias, perdições, esboços, experimentações, pesquisas, excitações, silêncios.
sexta-feira, 13 de abril de 2007
Ratos - 3
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