Um dos aspectos mais importantes da obra de Franz Kafka (1883-1924) é a sua crítica implacável dos fundamentos do Estado moderno, à mecanização da vida contemporânea e ao surgimento de uma elite administrativa altamente burocrática, hierarquizada e despótica. É indubitável que a crítica kafkiana de uma modernidade opressiva e desumana se tenha constituído, até hoje, na questão que mais interessou os estudiosos da obra do escritor checo.
Na Colónia Penal é talvez o texto de Kafka em que o absurdo da autoridade é apresentado da maneira mais brutal e desumana. Um soldado detido numa colónia francesa é condenado à morte por indisciplina. A sua sentença é executada por uma máquina de tortura que, por intermédio de um sistema de agulhas, escreve repetidas vezes no seu corpo a seguinte inscrição: “Honra os teus superiores”. Todavia, o personagem principal deste pesadelo não é nem o Visitante, que é convidado para assistir ao suplício, nem tampouco o Oficial, o Condenado ou mesmo o Comandante. O protagonista é, sem dúvida, a Máquina. Neste contexto, a autoridade atinge o culminar da abstracção: ela já não é mais fruto da acção humana, mas de uma instância mecânica que se emancipou, estabelecendo o seu primado. “Ao longo da explicação do Oficial, a Máquina aparece progressivamente como sendo um fim em si”, descreve Lowy. O prisioneiro é oferecido à Máquina, para que esta possa levar a cabo a sua obra-prima. O próprio Oficial não passa de um servidor da máquina, sacrificando-se, no final do texto, a “esse insaciável Moloch”. Para Lowy, a autoridade aparece no conto “na sua vertente mais alienada, mais reificada, enquanto mecânica ‘objectiva’: fetiche produzido pelos homens, acaba por os subjugar, dominar e destruir”. Nesta parábola onde a culpa paira à procura de um culpado, (W. Benjamin), Kafka faz jus ao seu estilo sóbrio, sereno e desconcertante, para exprimir a sua profunda desconfiança em relação à sociedade industrial. Que desumaniza o indivíduo, mecaniza a sua existência, reduz os espaços da sua interioridade e dissolve a condição humana numa massa de reflexos indistintos da própria máquina. O texto, escrito pouco antes da I Guerra Mundial, ainda que publicado após o seu fim, é uma advertência macabra sobre as consequências, na estrutura social e nas relações de poder por ela entretecidas, de um processo de industrialização e mecanização acelerado, que diviniza a máquina e o progresso em detrimento das aspirações tradicionais do homem. Eficiência, eis a nova palavra de ordem, que substitui os anseios por liberdade e justiça. A conclusão do conto é a afirmação cabal do carácter negativo da crítica de Kafka, uma afirmação trágica da impotência do homem diante dos novos monstros gerados pelo sonho da razão.
Existe outra edição portuguesa do livro, para além daquela que referes?
ResponderEliminarOlá,
ResponderEliminarSim, há uma edição da Litoral.Mas a tradução deixa algo a desejar.
Bjs
muito preciosa a sua análise. Assisti a um documentário brasileiro sobre o tráfico no Rio e a parte que se refere às formas de repressão da polícia carioca parece mais uma máquina, inscrevendo a tiros de fuzil a realidade brasileira nos corpos dos habitantes de periferia. O meu post foi este: http://flashpeople.blogspot.com/2008/08/noticias-de-uma-guerra-particular-1999.html
ResponderEliminarApareça por lá e comente! Valeu mesmo!
Joéverson