Há dias recebi uma daquelas chamadas telefónicas a que quase todos já nos habituámos: alguém nos quer vender um produto ou serviço, ou então, em jargão publicitário, mais uma "prospecção de mercado". Do outro lado, uma menina assaz simpática e nada impaciente questionava os meus hábitos quanto ao consumo de café e, acessoriamente, de chá. A insistência era posta no hipotético conhecimento da existência de milagrosas "pastilhas" de café colocadas na máquina expresso caseira. Percebi logo que se tratava de uma campanha de "desnatagem": um produto inovador, que requer uma desabituação de modelos aceites pela esmagadora maioria dos consumidores, necessita de um halo de simpatia ou prestígio para persuadir um número considerado razoável, para ser considerada a aposta decisiva do lançamento massivo no mercado. Pois a "entrevista" estava a correr muito bem até ao momento em que, depois de fornecer alguns dados pessoais - deles excluído o nome, é claro - a tal menina me questionou acerca do número de pessoas do agregado familiar. Aí é que foi do caraças... "Agora é uma pessoa que são muitas", lancei. "Agora? Muitas?", "Sim, mas as outras estão sempre presentes..." Juro que, nesta altura, se a menina achasse que eu era um epígono de Fernando Pessoa, compraria as simpáticas pastilhas até ao fim da vida. "Mas que outras, quantas?" "Todas de quem gosto. Algumas já viveram há dois mil e quinhentos anos..." "Bom, quer responder ou não?" "Sabe, isto é sazonal. Na primavera prefiro umas e no Inverno outras". Nesta altura, a menina devia estar a pensar mudar de emprego. Atirou então, num lance decisivo, onde se adivinhava uma ânsia desesperada de "normalização"e de "senso": "Mas é solteiro ou casado?" Perante um assunto civil de tal magnitude, acorreu a prudência, a tal que é boa conselheira, conhecem? Mas logo a mandei para trás, em parte por causa do insuportável ar beato com que se apresentou. E então, veio o fulgor da recusa magestática do tempo, só ao alcance de um pirata ou de um louco. Que perpassou como um véu no meu espírito:
"Sabe, nunca tinha pensado nisso. Se as pastilhas puderem ajudar..."
"Sabe, nunca tinha pensado nisso. Se as pastilhas puderem ajudar..."
publicado no jornal "O Interior"
Gil:
ResponderEliminarParabéns. Esta é a melhor história que já aqui contaste.
Hilariante!
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