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sexta-feira, 26 de janeiro de 2007

A náusea

Tenho percorrido alguns blogues que, explicitamente, convocam ao voto no "Não", no próximo referendo. Li coisas inacreditáveis. Falácias puras. Destinadas unicamente a baralhar e distorcer o debate em curso. A mensagem é, muitas vezes, apocalíptica. Acenam-se fantasmas como o da "liberalização do aborto", a sua "inscrição como direito fundamental", o aumento catastrófico do seu número, em caso de vitória do "sim", o "genocídio" que vem aí, o apelo à desobediência civil, não pagando impostos que financiem a "matança", etc. A criação de um cenário angelical faz parte do programa: basta ver a profusão da amostragem de bebés, com músicas de fundo em defesa de uma "vida" onde aqueles que a geram não têm qualquer possibilidade de decidir. Pois o assunto já está sentenciado pelos que querem manter esta lei iníqua, exclusivamente em favor das suas convicções particulares. E logo num domínio interdito: a auto-determinação do corpo e da reprodução. A evidência é esta: a possibilidade legal de a mulher interromper a sua gravidez até às dez semanas, sem riscos e sem medo não faz aumentar o número de abortos. Basta ver as estatísticas de países onde o enquadramento legal nesse sentido já existe há muito. Para além do que, acreditar no contrário, é não querer entender a penosidade e as circunstâncias que levam a mulher a tomar a decisão de abortar. Todavia, mantendo-se a lei actual, como querem os defensores do"não", tal significa que essa mulher, nas mesmas circunstâncias, pode ser condenada pela prática de um crime. É esta a diferença abissal entre o reconhecimento pelo Estado de os cidadãos poderem exercer uma faculdade, em condições dignas, e a imposição de um estigma moralmente inaceitável, com os efeitos perversos - aborto clandestino - que se conhecem. Negando estas evidências, numa demonstração inequívoca de má-fé, os adeptos do status quo passam ao lado do que é fundamental, optando pelo mais fácil: baralhar, confundir, branquear, mascarar a desumanidade que querem manter com propósitos salvíficos.
Entretanto, fiquei hoje a saber no Público que o blogue "Pela Vida" tem links direccionados para outros blogues notoriamente de inspiração fascista e nazi. Como exemplos: Fascismo em Rede, o Pasquim da Reacção, Kombat Mortal, Império Lusitano, Alma Pátria, Jovem NS, Estado Novo, PNR Aveiro e Último Reduto. Todos incansáveis defensores do "Não", como já devem ter adivinhado. E todos filiados em correntes ideológicas que muito prezam a "Vida", como se sabe. Não eram os franquistas que gritavam "Viva la muerte"? Todavia, acredito que esta circunstância seja meramente conjuntural e tem a importância que merece. Mas, organicamente, deu-me um sinal precioso: BASTA!
Este debate assinala uma recomposição do país que cai muito para além da política. Reacende arcaísmos, preconceitos de classe, atavismos fundamentados em crenças religiosas e filosóficas, diferenças profundas de ordem sociológica, demográfica ou cultural, colocando o pior do país "antigo"e o pior do país "moderno" num destaque imerecido, mas útil. E o que vi já chega. Já anunciei o sentido do voto. Já dei o correspondente contributo para o debate. Mas agora impõe-se o silêncio. A vida é realmente um mistério e uma das formas de a venerar é não contrabandear com a dor que ela encerra. Fica assim encerrada, pela minha parte e neste espaço, a discussão sobre o tema. Voltarei para a regulamentação da futura lei. Essa sim, uma questão em que as opções políticas de gestão de meios se tornarão mais prementes.
PS: Vou abrir uma única excepção em relação ao silêncio prometido. A razão é desculpável: o líder do PSD, Marques Mendes, foi "apanhado" em Aveiro pela comunicação social, por "mero acaso", como "cidadão", num conclave dos medievalistas pró-não. Sabem que mais?: o deputado, com a boca na botija, disse precisamente o mesmo que o Bispo de Viseu. Ipsis verbis. De perna aberta, quis agradar sobretudo a gregos, mas acenar com o lenço aos troianos. Uau! Que triste intermezzo para a penosa tragi-comédia quotidiana dos políticos!

5 comentários:

  1. Não me surpreende essa colagem. Este referendo serve também para mobilizar uma direita incapaz de agir, mas muito dada a reagir.

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  2. Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

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  3. O pior ainda está para vir. Aquela história dos panfletos inqualificáveis que puseram nas mochilas dos miúdos numa escola para mostrarem aos pais é um indício.

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  4. Outra coisa ainda é a forma habilidosa como os pró-não tentam confundir o eleitorado acerca da pergunta que vai ser referendada.A finalidade é separar a pergunta em várias, atribuir-lhe significados que ela não tem. Uma vergonha.

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  5. Sofia:
    Sobre esse ponto, recomendo a leitura da última crónica do Rui Tavares no Público de ontem, sábado. Faz uma desmontagem completa dos argumentos usados nesse sentido. Ao mesmo tempo, esclarece devidamente sobre o sentido da pergunta.

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