Tenho percorrido alguns blogues que, explicitamente, convocam ao voto no "Não", no próximo referendo. Li coisas inacreditáveis. Falácias puras. Destinadas unicamente a baralhar e distorcer o debate em curso. A mensagem é, muitas vezes, apocalíptica. Acenam-se fantasmas como o da "liberalização do aborto", a sua "inscrição como direito fundamental", o aumento catastrófico do seu número, em caso de vitória do "sim", o "genocídio" que vem aí, o apelo à desobediência civil, não pagando impostos que financiem a "matança", etc. A criação de um cenário angelical faz parte do programa: basta ver a profusão da amostragem de bebés, com músicas de fundo em defesa de uma "vida" onde aqueles que a geram não têm qualquer possibilidade de decidir. Pois o assunto já está sentenciado pelos que querem manter esta lei iníqua, exclusivamente em favor das suas convicções particulares. E logo num domínio interdito: a auto-determinação do corpo e da reprodução. A evidência é esta: a possibilidade legal de a mulher interromper a sua gravidez até às dez semanas, sem riscos e sem medo não faz aumentar o número de abortos. Basta ver as estatísticas de países onde o enquadramento legal nesse sentido já existe há muito. Para além do que, acreditar no contrário, é não querer entender a penosidade e as circunstâncias que levam a mulher a tomar a decisão de abortar. Todavia, mantendo-se a lei actual, como querem os defensores do"não", tal significa que essa mulher, nas mesmas circunstâncias, pode ser condenada pela prática de um crime. É esta a diferença abissal entre o reconhecimento pelo Estado de os cidadãos poderem exercer uma faculdade, em condições dignas, e a imposição de um estigma moralmente inaceitável, com os efeitos perversos - aborto clandestino - que se conhecem. Negando estas evidências, numa demonstração inequívoca de má-fé, os adeptos do status quo passam ao lado do que é fundamental, optando pelo mais fácil: baralhar, confundir, branquear, mascarar a desumanidade que querem manter com propósitos salvíficos.
Entretanto, fiquei hoje a saber no Público que o blogue "Pela Vida" tem links direccionados para outros blogues notoriamente de inspiração fascista e nazi. Como exemplos: Fascismo em Rede, o Pasquim da Reacção, Kombat Mortal, Império Lusitano, Alma Pátria, Jovem NS, Estado Novo, PNR Aveiro e Último Reduto. Todos incansáveis defensores do "Não", como já devem ter adivinhado. E todos filiados em correntes ideológicas que muito prezam a "Vida", como se sabe. Não eram os franquistas que gritavam "Viva la muerte"? Todavia, acredito que esta circunstância seja meramente conjuntural e tem a importância que merece. Mas, organicamente, deu-me um sinal precioso: BASTA!
Este debate assinala uma recomposição do país que cai muito para além da política. Reacende arcaísmos, preconceitos de classe, atavismos fundamentados em crenças religiosas e filosóficas, diferenças profundas de ordem sociológica, demográfica ou cultural, colocando o pior do país "antigo"e o pior do país "moderno" num destaque imerecido, mas útil. E o que vi já chega. Já anunciei o sentido do voto. Já dei o correspondente contributo para o debate. Mas agora impõe-se o silêncio. A vida é realmente um mistério e uma das formas de a venerar é não contrabandear com a dor que ela encerra. Fica assim encerrada, pela minha parte e neste espaço, a discussão sobre o tema. Voltarei para a regulamentação da futura lei. Essa sim, uma questão em que as opções políticas de gestão de meios se tornarão mais prementes.
PS: Vou abrir uma única excepção em relação ao silêncio prometido. A razão é desculpável: o líder do PSD, Marques Mendes, foi "apanhado" em Aveiro pela comunicação social, por "mero acaso", como "cidadão", num conclave dos medievalistas pró-não. Sabem que mais?: o deputado, com a boca na botija, disse precisamente o mesmo que o Bispo de Viseu. Ipsis verbis. De perna aberta, quis agradar sobretudo a gregos, mas acenar com o lenço aos troianos. Uau! Que triste intermezzo para a penosa tragi-comédia quotidiana dos políticos!
Não me surpreende essa colagem. Este referendo serve também para mobilizar uma direita incapaz de agir, mas muito dada a reagir.
ResponderEliminarEste comentário foi removido por um gestor do blogue.
ResponderEliminarO pior ainda está para vir. Aquela história dos panfletos inqualificáveis que puseram nas mochilas dos miúdos numa escola para mostrarem aos pais é um indício.
ResponderEliminarOutra coisa ainda é a forma habilidosa como os pró-não tentam confundir o eleitorado acerca da pergunta que vai ser referendada.A finalidade é separar a pergunta em várias, atribuir-lhe significados que ela não tem. Uma vergonha.
ResponderEliminarSofia:
ResponderEliminarSobre esse ponto, recomendo a leitura da última crónica do Rui Tavares no Público de ontem, sábado. Faz uma desmontagem completa dos argumentos usados nesse sentido. Ao mesmo tempo, esclarece devidamente sobre o sentido da pergunta.