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domingo, 21 de janeiro de 2007

Crimes exemplares - 14

No momento em que acordou não aconteceu nada. Como sempre, esperaria que os instantes seguintes o devolvessem à realidade. Cujos contornos se iriam tornando cada vez mais familiares e previsíveis. Desta vez, nada disso sucedeu. Uma luz ténue e espectral iluminava um pequeníssimo compartimento, no qual se encontrava. Reconheceu o que pareciam ser uns painéis, com botões e luzinhas a piscar. Por todo o lado, objectos metálicos incorporados, que produziam um zumbido constante e uniforme. Naturalmente, já se tivera apercebido da inexistência de gravidade no cubículo. "Desta vez a Joana esmerou-se", pensou. Fazia já algum tempo que ele e sua mulher mantinham uma espécie de jogo de alto risco. Consistia em, alternadamente, um proporcionar ao outro uma situação inesperada, radical, absolutamente realista. Criada ao pormenor, com recurso a uma empresa que ambos criaram, para que as emoções fortes não faltassem. Nessa altura avistou a Terra, lá em baixo, envolta no seu halo atmosférico. "Desta vez, pelos vistos, não olhou a meios". "Meteu-me num satélite durante umas horas. Nem sei como conseguiu isto". Mas desde o início havia qualquer coisa que lhe estava a escapar. Algo que transformara o que seria mais um lance do jogo a dois num pesadelo sem explicação. "Esta era a minha vez de jogar!!!", gritou. E tinha-o feito: a sua mulher deveria neste momento estar a ser transportada num contentor empilhado num cargueiro em pleno oceano Pacífico. Que a certa altura seria deitado ao mar. E nada mais aconteceria. Ninguém levantaria suspeitas. Seria esse o seu último lance neste jogo. Foi então que entendeu tudo: ela tivera a mesma ideia que ele. Antes ou depois? Teria sobrevivido? Um pavor indizível paralisou-o. O jogo tinha acabado. E quando a reserva de oxigénio do seu fato espacial se esgotasse, começaria a eternidade...

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