Já aqui antecipei o que penso acerca do aborto, relativamente ao próximo referendo sobre a IVG. Todavia, se a minha resposta será inequívoca pelo sim, ela não dispensa algumas notas que a sustentem.
Antes de mais, acredito que o corpo é o ponto de partida de todas as revoluções, como bem dizia Pasolini. Todas as linhas de fractura começam aí. Veja-se o episódio (trágico) da "heresia" dos cátaros, por exemplo.
Comecemos pelo aparentemente mais inócuo: se eu quiser fazer-me tatuar de forma bizarra, ou meter piercings por todo o lado, ou se arranjar uma cabeleira roxa, ou se usar roupas que eu próprio desenho e construo, à base de materiais reciclados, ou se decidir participar num espectáculo em que me auto-mutilo, ou se quiser doar em vida alguns órgãos "dispensáveis", que legitimidade tem o Estado, a Moral, ou o que quer que seja, para me censurar? Para além de todas as outras diferenças, há duas coisas que nos distinguem do resto do reino animal: os supremos privilégios de podermos escolher a nossa morte e o de não procriar. Ora, o cristianismo diz-nos "crescei e multiplicai-vos" e que a nossa vida está nas mãos de Deus. Para quem segue pela vida como se o amor ou a arte fossem a única forma de traficar com o desconhecido - o meu caso - estes conceitos são estranhos e incompreensíveis. Alguns exemplos:
A vida não pode ser referendada, é óbvio que não. O que se vai referendar é o apagamento de qualquer censura penal a um ACTO MÉDICO específico, realizado dentro do período que a lei vier a definir. Que deverá ter um acompanhamento prévio por técnicos especializados, como acontece noutros países,de que o melhor exemplo é a Alemanha. Vai haver mais abortos por causa da sua despenalização? É claro que não! Dizer o contrário é não perceber o que está em jogo para a mulher que o pratica.
Borges dizia que, ou se é platónico ou aristotélico. Para mim, o debate em curso prova isso mesmo.
Antes de mais, acredito que o corpo é o ponto de partida de todas as revoluções, como bem dizia Pasolini. Todas as linhas de fractura começam aí. Veja-se o episódio (trágico) da "heresia" dos cátaros, por exemplo.
Comecemos pelo aparentemente mais inócuo: se eu quiser fazer-me tatuar de forma bizarra, ou meter piercings por todo o lado, ou se arranjar uma cabeleira roxa, ou se usar roupas que eu próprio desenho e construo, à base de materiais reciclados, ou se decidir participar num espectáculo em que me auto-mutilo, ou se quiser doar em vida alguns órgãos "dispensáveis", que legitimidade tem o Estado, a Moral, ou o que quer que seja, para me censurar? Para além de todas as outras diferenças, há duas coisas que nos distinguem do resto do reino animal: os supremos privilégios de podermos escolher a nossa morte e o de não procriar. Ora, o cristianismo diz-nos "crescei e multiplicai-vos" e que a nossa vida está nas mãos de Deus. Para quem segue pela vida como se o amor ou a arte fossem a única forma de traficar com o desconhecido - o meu caso - estes conceitos são estranhos e incompreensíveis. Alguns exemplos:
- imagine-se que, de plena consciência, decidia não querer ter filhos. Nesta linha, escolhia viver com quem tivesse tomado essa opção. Agora imagine-se que acontecia um imprevisto, determinado por factores absolutamente acidentais. Quem teria o direito de nos obrigar a ter filhos que não seriam, de todo, desejados?
- O mesmo se diga no caso de uma mulher a quem o marido, numa noite de violência e bebedeira, acaba por engravidar. Perspectivando-se mais um rebento a juntar a outros sete, dos quais dois já andam a fazer uns "trabalhos"por fora. Quem iria lá dizer-lhe: vá, agora aguenta? É essa a alternativa de quem acha que o útero da mulher deve estar ao serviço de comandos divinos e não da sua liberdade.
- Por outro lado, sabe-se que os métodos contraceptivos, uns mais que outros, não são 100% eficazes. Mesmo utilizados correctamente, de forma esclarecida e responsável, pode suceder uma gravidez indesejada. Quem teria legitimidade para dizer a uma mulher a quem isso aconteça o que deve ou não fazer?
A vida não pode ser referendada, é óbvio que não. O que se vai referendar é o apagamento de qualquer censura penal a um ACTO MÉDICO específico, realizado dentro do período que a lei vier a definir. Que deverá ter um acompanhamento prévio por técnicos especializados, como acontece noutros países,de que o melhor exemplo é a Alemanha. Vai haver mais abortos por causa da sua despenalização? É claro que não! Dizer o contrário é não perceber o que está em jogo para a mulher que o pratica.
Borges dizia que, ou se é platónico ou aristotélico. Para mim, o debate em curso prova isso mesmo.
Gil,
ResponderEliminarColocas questões muito pertinentes que variam conforme vários casos e vivências. Sei que isso é o objecto da discussão centrada sobre o que é a Lei e porque é que uma Lei é melhor que a outra.
Primeiro, quando me referi ao "aguentar-se nas pernas" não tem a ver com o que se passa depois mas sobretudo a ver com o que se passa antes. O caso da violação dentro dum casamento é um facto muito grave que tem a ver com como fazemos entrar a Lei dentro do dito casamento. Cada vez há mais coisas pouco tranquilas e, quando penso no caso da filha que disse o Pai tê-la violadao, vindo a contar depois que foi tudo inventado ( depois do pai passar 12 anos da sua vida preso na ala da Prisão onde os condenados aplicam a pena de morte a certos crimes) não sei o que dizer. Talvez o melhor seja mesmo acabar com a família, arranjar certificados de ajuntamento provisório e, aí sim, será difícil que não hajam mais gravidezes indesejadas. Num direito de construção costumeira, todos estes casos, estes contextos que desculpam as pessoas, como no caso das gravidezes entre as pessoas muito jovens, seriam acautelados. Mas também seriam disciplinados por um Direito que se constrói paulatinamente, onde os Juízes têm autoridade e onde o princípio da Autoridade é respeitado, inspirando a própria forma de julgar. Este Direito não é referendado por uma maioria eleitoral de uma Legislatura e, quase naturalmente, não podia dar a Soberania ao Eleitorado. Um Direito assim ajudaria e resultaria de uma sociedade mais rica e profunda, penso eu com mais espaço que o da Igualdade.
Onde entra a Lei? A Lei tem a sua função mas é preciso que seja cumprida, o que não é a cultura de hoje em dia em Portugal. Quem cumpre a lei é estúpido, não enriquece, nem é promovido, ou pelo menos assim pensam as pessoas quando enfrentam a Lei. O medo de que o mercado abortivo espanhol, como outros, se estenda a Portugal é um medo legítimo. A sociedade espanhola não é semelhante à nossa e as escolhas europeias dos últimos 30 anos, resultarão inevitavelmente em escolhas ibéricas, talvez porque os nossos dirigentes não tiveram visão ou nós não a tivémos.
Sobre o embrião ou óvulo fecundado ser uma forma humana de vida não se pode considerar uma coisa meramente moral ou o seu contrário. Parece-me que os mesmos conceitos científicos em outros assuntos variam com as escolas, variam às vezes rapidamente mas não me parece justo que se defenda o lince da malcata, ou espécies do Ecossistema e se considere a forma de vida intra-uterina como um simples factor da decisao individual. Sei que quem aborta são as Mulheres, antes de tudo, mas sei que os outros têm algo a dizer que deve ser tomado em consideração. A Lei tem uma função talvez, mas para aperfeiçoar o Direito, não para romper com ele. Na verdade, um Direito que rompe, verdadeiramente não é Direito, é um tôrto. A decisão do Aborto dependeria assim de uma série de alternativas sérias e os médicos podiam ser desculpados em vários casos. Os médicos estarão, em Portugal, a esta altura moral? Ao menos deixem-nos resolver esta questão entre nós, com os valores Portugueses, sem misturar modas europeias. Não penso que o Referendo tenha sido objecto de um debate verdadeiro e tem até já um precedente de rejeição, numa altura em que as circunstâncias eram semelhantes. Perguntar sempre significa que só se pára quando se obtém a resposta que o Perguntador quer, o que é injusto e incorrecto. Depois, porque o debate sobre o que fazer a essa forma de Vida Humana que é a Vida intra-uterina deve ser inserido sobre uma série de debates em torno do que queremos da nossa forma de viver. Por exemplo, tal acontece agora com o Agendamento da Constituição Europeia no nosso Parlamento, que não vai a Referendo e sobre o qual não são dadas respostas finais. Deixa-se andar e substitui-se toda a nossa maturidade para pensar por uma gestão do que vai acontecendo, umas vezes pelo prisma da Esquerda outras pelo da Direita. É, por isso que, hoje ser democrata é ser demagôgo e até ignorante.
Acho que devemos chamar a responsabilidade da Mulher (e a nossa) como mãe e irmã, mais do que a "Mulher, Mulherão" mítico com que alguns andam a enganar a mulheres reais. Uma Lei que passa a dar a indivíduos o direito absoluto de decidir sobre essa forma de Vida Humana intrauterina, é uma Lei que suspende o valor da Lei, quer dizer, a sua universalidade. É uma Lei que abandona as pessoas em vez de as apoiar com uma vontade colectiva, que também existe e precisamos dela, de vez em quando.
Não te consigo perceber com essa de tudo começar pelo corpo. O nosso corpo é complexo e ainda muito desconhecido.O que dizes ùe uma frase de estilo que te peço que enquadres, quando -- como me aconteceu a mim --) etive a arquejar num hospital. Pasolini é um personagem trágico, como sabes, que morreu de uma forma para a qual talvez se conduziu, ceifando cêdo uma criatividade discutível. Se temos algo a dizer aos jovens muçulmanos que se auto-mutilam, temos o direito de o dizer a outros, que nao são muçulmanos. A tua ferida dói em mim.
E agora, do que gosto de falar: Pasolini era fascista camisa negra, Céline era uma aventureiro, parece que pouco original (vd. Moravagine de Blaise Cendrars, Ezra Pound era fascista sim senhor e foi sempre uma grande homem, Unamuno ensinou o sentido trágico aos homens e soldados da Legião que a vieram a pôr em prática -- mas quando Milan Astray insultou a Mente, como o fazem os budistas, Unamuno, que era apenas contra a barbárie comunista, não aguentou que lhe dissessem mal da sua condição de basco e arranjou uma saída menos trágica ao descobrir, num tempo medonho, que tinha, afinal, uma raíz (e um ofício de professor, pois disse,na altura, que, como basco, ensinava os espanhóis a falarem espanhol). Eliade não foi grande homem: depois de ser assistente, salvo erro, dum Professor de História que defendeu corajosamente a ideologia nacionalista, não foi capaz de piar quando a Guarda de Ferro, o assassinou; Como Heidegger, com o judeu Husserl, ficou-lhe com a Cátedra; e quando a Guarda de Ferro, apesar da barbárie, morreu com inegável coragem ( não saíam de sentido, mesmo sob as balas), este Guradinha de ferro fugiu para Portugal. A sua Antropologia é muito pobre comparada com aquela nascida da Liberdade, depois da Guerra, dos dois lados do Atlântico.
Não sei mais que dizer. Peço apenas que votemos com mais profundidade de pensamento, votemos por nós; E, mesmo se a vida perder, não cessemos de ser humanos.
Dedico o que disse a um jovem de 43 anos que morreu hoje, em Londres; Tenho a certeza que muitos de nós, se soubéssemos, teríamos lutado dentro das suas veias por uma vida que era já a de um girino. Que a sua face fique gravada, porque lutou pela Vida...
André
André:
ResponderEliminarTal como na questão do radicalismo islâmico, as nossas posições creio que ficaram suficientemente clarificadas.
Uma nota: em relação ao Mircea Eliade, embora válido em relação a qualquer autor,parece-me que te concentras em julgar o homem e não a obra. Melhor: a obra através do homem, com base num simples episódio. Esse caminho é perigoso. Por isso, eu faço precisamente o contrário.
Tal como o autor do blogue, a minha resposta vai também pelo SIM. Curiosamente, no último referendo votei "não". Mas depois de estar atento aos argumentos dos que pugnaram pela manutenção do que está, mudei de ideias. Para serem coerentes, deviam criar estabelecimentos para recolher as crianças não desejadas ou nascidas na miséria moral e material. Mas nada fizeram. Limitam-se à retórica de sempre. Com maior ou menor sofisticação, preferem que Portugal continue a ser um país atávico.
ResponderEliminarGil,
ResponderEliminarO episódio de Mircea Eliade não é um episódio. Tem a ver com toda a história trágica da Roménia entre as Guerras, um país de que gosto muito. Tem a ver com esse estranho movimento chamado Guarda de Ferro e com esse misterioso, assassino e mártir Kondreanu que enche tanto a bôca da extrema-direita romântica. Olha que não é exagerado dizer que Eliade, se teve uma carreira e publicou foi graças a isso que chamas episódio. Outros tão bons ou melhores do que ele, foram mortos nas duas frentes, contra os alemães e contra os russos. E, depois parece que não tens em mente toda a Obra dele, nomeadamente a que ele tentou esconder em Paris e os factos que tentou ocultar. Procura na Net um importante livro dele de elogio rasgado ao Salazar, só a título de exemplo.Talvez haja lá qualquer coisa.
Quanto ao comentário anónimo, é isso que me mete mêdo. Sobre algo que fica para além do que se devia fazer e do que se não fez, as nossas opiniões oscilam com outras coisas fáceis de fazer, que são referendos e consultas a partes cada vez mais pequenas do eleitorado. E tem-se gerado este fenómeno na Democracia, que já era conhecido dos Antigos: cada vez mais o eleitorado tem reféns os Elegidos, a um nível mais pequeno, sejam os Referendos específicos, as Autarquias, enfim o Demo ( por isso, em todas as Democracias, antigas ou modernas, os líderes pagam clientes que arrastam para as votações). Sei bem qual é a opinião tendencial de quem lê e escreve neste Blog.Eu próprio tenho dúvidas mas nem todas as dúvidas são para se votar, como se a Lei e um Governo de Legislatura ou até uma Revolução de 70 anos, como foi a russa, tivessem mudado o essencial da condição humana.Dou um exemplo muito simples: um Homem que ama uma mulher e, a certa altura, julga amar outra, não resolverá nada se alinhar as razões e tentar votá-las. Depois de votar, nesse preciso instante, mudará de opinião. Para estas e outras, o Ocidente inventou a Filosofia e o Oriente a meditação, dizem alguns que ambos se encontraram no fenómeno religioso, porque todas as coisas, as pequenas e as grandes, são coisas transcendentes.
Olha Gil desculpa lá,mas ao teu martelo de encerrar a sessão, não só me pareces pouco informado sobre o que é "radicalismo islâmico" ( disse no outro debate que, se o debate quisesse continuar tinha que seguir outro formato) como as ideias não estão esclarecidas neste. Para ti podem estar, és soberano, mas ficas devedor de dizer quais são os perigos de me perguntar sobre a personalidade do autor e imaginar que alguma coisa têm a ver com a obra. É outro debate e não te quero cansar, nem a mim, embora saiba que os sobreviventes , nesta fase final da democracia moderna, são os bufos ou os vendilhões incansáveis. Porque nem todos os debates são não-violentos e nem toda a violência física é a forma mais violenta de existir.
André
André:
ResponderEliminarHoje aqui é feriado municipal. Estes são os que sabem melhor...
Repara, não disse que as nossas posições eram mais ou menos esclarecidas. Porventura as tuas são-no até mais do que as minhas. O que disse foi que, neste debate, estavam já clarificadas. No sentido em que já tínhamos exposto de forma conclusiva - quer para nós quer para quem nos lê - as nossas ideias sobre a matéria. Sendo claro que nenhum iria mudar de posição sobre estas matérias. Mas isto vale o que vale. Nada, mas mesmo nada, te impede de intervires neste espaço quando e como quiseres.Que será sempre tomado como uma honra para este escriba.
Quanto ao Mircea Eliade, desconhecia esses factos. Esclarecendo a tua dúvida acerca da perigosidade de fazer juízos prematuros sobre determinados autores, dir-te-ei o seguinte: para mim, a exemplaridade moral não é determinante na avaliação que faço de um autor. Um exemplo. arrumar o Ernst Junger na categoria dos comprometidos com o nazismo, só porque, ao serviço do III Reich, trabalhou na Paris ocupada nos serviços de censura, seria um péssimo serviço para a Literatura do séc. XX. De que um dos expoentes máximos é, para mim, o centenário escritor.
Gil,
ResponderEliminar0brigado e bom Feriado na Guarda da nossa terra. Tambem gosto do Ernest Juenger e ate gostava de ser censor mas na plateia como o Almada e a sua trupe e em espectaculos politicos }a abrir garrafas de vinho e a assobiar). Mas na Paris ocupada, naao. Santa Joana d Arc gostava do seu povo a falar.Foi a falar e a protestar que ela expulsou os ingleses.E mais vale a simplicidade de Sta Joana que corria pelos prados e chegava a casa a dizer"é maravilhoso!" que todos os romances do Juenger.
André
A minha resposta vai ser sim. Porque sim.
ResponderEliminarOh Sofia,
ResponderEliminarDe certeza que já tem idade para ter juízo.
Com respostas dessas é caso para dizer: eu nem voto, porque nem.
André
O que é engraçado é que, no mesmo país em que muitas mulheres têm pavor de engravidar para não serem despedidas, ainda há quem defenda que deverão ser presas se fizerem aborto.
ResponderEliminarEm muitos casos, são os mesmos aqueles que as despedem e que as condenam.A hora é de acção. Há por aí uns abaixo-assinados a circular para esta batalha que se avizinha contra a hipocrisia e a moral de sacristia. Logo darei notícias.
Bem visto. São quase sempre realmente os mesmos. Esta campanha tem que ser feita com classe, com serenidade, sem responder a provocações rasteiras. Como a que me lançaram à pouco aqui nesta caixa de comentários. Com a padralhada tem que se ser paciente, mas firme.
ResponderEliminarSofia,
ResponderEliminarAqui vai mais uma provocação rasteira porque eu não vou entrar no debate como manda o Presidente,ou seja, com serenidade. Vou entrar à folião porque a Democracia tirou-nos a vontade de rir. Façamos uma combinação de Sim com Nem: vou votar Nim!
André