Reflexões, notas, impressões, apontamentos, comentários, indicações, desabafos, interrogações, controvérsias, flatulências, curiosidades, citações, viagens, memórias, notícias, perdições, esboços, experimentações, pesquisas, excitações, silêncios.

sexta-feira, 24 de novembro de 2006

Dos livros - 1

"Quem me surpreender em flagrante delito de ignorância, não me fará nada de mal, pois não posso responder a outrem pelas minhas opiniões, eu que não o faço a mim mesmo e que não estou satisfeito com elas. Quem estiver em busca de saber, que o pesque onde ele se encontra: não há nada de que menos me gabe. (…) Se sou de alguma leitura, também o sou de nenhuma memória. (…)
Não conto os meus empréstimos, peso-os. Se os tivesse querido fazer valer pelo número, teria carregado o meu livro com o dobro deles. São todos tirados de nomes tão famosos e antigos que me parece que se nomeiam por si sós, sem precisar que eu o faça. Dos raciocínios e das ideias que transplanto para o meu solo, misturando-os com os meus, por vezes omiti o nome do autor, para pôr a brida na temeridade dos juízos precipitados que se emitem acerca de toda a sorte de escritos, nomeadamente dos recentes, de homens ainda vivos, o que permite a toda a gente falar deles e parece denunciar a sua concepção e o seu desígnio como igualmente vulgares. Quero que dêem um piparote no nariz de Plutarco tomando-o pelo meu, e que se escaldem a injuriar Séneca através de mim. Preciso é que eu esconda a minha fraqueza sob essas grandes autoridades. Muito gostaria de quem me soubesse desplumar, se o fizesse pela clarividência do seu juízo e pelo seu discernimento da força e da beleza dos ditos. Pois eu que, por falta de memória, não consigo todas as vezes destrinçá-los quanto à proveniência, sei muito bem que, tendo em conta a medida dos meus limites, o meu solo não é de todo capaz de produzir algumas preciosíssimas flores que por lá acho disseminadas, (…).
Só por duas coisas tenho de responder, caso ocorram: enredar-me; haver nos meus raciocínios vícios que eu não detecte, ou que não possa perceber quando mos mostram. Pois amiúde escapam-nos defeitos ao olhar, mas a doença do juízo consiste em não poder apercebê-los quando no-los revelam. A ciência e a verdade podem-se encontrar em nós sem o juízo, e este sem elas; e é, deveras, o reconhecimento da ignorância uma das mais belas e seguras provas de juízo que se me deparam.
Bem desejaria ter uma mais perfeita inteligência das coisas, porém não a quero adquirir ao caríssimo preço que ela custa. Nos livros busco só o dar-me prazer através de uma decente distracção ou então, se estudo, neles procuro apenas a ciência que trata do conhecimento de mim mesmo e me ensina a bem morrer e a bem viver."

Montaigne, Dos Livros, em Ensaios, Relógio d'Água, 1998

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