Reflexões, notas, impressões, apontamentos, comentários, indicações, desabafos, interrogações, controvérsias, flatulências, curiosidades, citações, viagens, memórias, notícias, perdições, esboços, experimentações, pesquisas, excitações, silêncios.

sexta-feira, 27 de outubro de 2006

Crimes exemplares - 10

Aquela manhã tinha todas as condições para acolher uma vida pouco exaltante, previsível, em que os acontecimentos se empilhassem como maçãs numa caixa. Mas há sempre que contar com a música do acaso, ou melhor, com a cacofonia ensurdecedora do desconhecido. Que, de repente, baralha todo o cálculo, dinamita toda a previsão, esmaga toda a certeza. Saí de casa acompanhado do meu irmão, com destino a uma loja de material informático. O objectivo era comprar alguns consumíveis a preço de revenda, após o que iria apanhar o comboio à estação central. Estava tudo a correr bem, até chegarmos perto do centro comercial. Mas eis que, por causa de umas obras na estrada, esta encontrava-se vedada ao trânsito. O que obrigou a um "desvio" por "mares nunca dantes navegados", durante cerca de vinte minutos. Nesse périplo, houve de tudo um pouco: circulação pela via reservada aos transportes públicos, inversões de marcha pouco ortodoxas, pedidos de informação aos chamados transeuntes - sendo que um deles era gago - passagem de semáforos no limite, etc. Por fim, lá chegamos. Num ápice, voámos até à tal loja. Mal entrei, apercebi-me do insólito: o empregado, num vagar oriental, contava dezenas de parafusos minúsculos no interior de uma caixa, alheado da nossa presença. Dissemos então ao que vínhamos. Por fim, lá se dignou a atender o nosso pedido. Dirigiu-se ao local onde estavam os artigos e, após um minuto de reflexão - presumo que de ordem metafísica - lá trouxe o que pretendíamos. O pior foi o pagamento. Num ritmo de fazer envergonhar uma lesma, introduziu no PC os dados para as fichas de cliente. Quando ia para pagar com cartão multibanco, informou que o terminal respectivo não estava operacional. Corri até ao andar de cima, onde, numa caixa MB, esperei durante cerca de 10 minutos que dois idosos fizessem uma transferência bancária. Por fim, contas feitas, rumo à estação. Naquele momento, faltavam 15 minutos para o comboio partir. Entretanto, no percurso até ao carro, a embalagem contendo as caixas de DVD rompeu-se. Imagine-se! O que obrigou a uma recolha caricata no meio do trânsito. Já no carro, começou uma corrida louca até ao comboio. Que contou com uma troca de mimos com um taxista num semáforo, várias ultrapassagens impossíveis, um desesperante camião de recolha do lixo pela frente, etc. Por fim, chegámos. Exactamente em cima da hora. A custo, "teletransportei-me" com a bagagem até à linha respectiva, rogando algumas pragas pouco recomendáveis a pessoas sensíveis. Só que, comboio nem vê-lo. Pelos altifalantes chegou então a canora mensagem, naquele som característico semelhante à celebre cena das "Férias do Senhor Hulot": por motivo de inundações, a circulação nessa linha estava suspensa. O transporte era assegurado por autocarros até à próxima estação. O meu já tinha saído, é claro. Lindo! Nesta altura, ultrapassados os limites do razoável, fui tomado por uma estranha impassividade. Telefonei ao meu irmão, contando-lhe o que se estava a passar. Deu meia volta e veio buscar-me. Não foram precisas mais do que meia dúzia de palavras. Dirigimo-nos à loja, manietamos o empregado e metemos-lhe a cabeça dentro da caixa dos parafusos. Ainda hoje estou para saber como os peritos forenses explicaram a existência, no seu estômago, de dezenas de objectos metálicos com 5mm de comprimento.

Ver anterior

3 comentários:

  1. Como participante activo neste "crime", não calculas o gozo que me deu vê-lo relatado por ti. Posso garantir aos demais leitores, que apesar de hilariante, não anda nada longe da realidade. Como ressalva, posso ainda testemunhar a insistência do autor em desencravar a chave Philips da faringe do pobre incauto.

    ResponderEliminar
  2. Este é quase o crime perfeito...Até porque há sempre alguém que tem que pagar por acaso de modo a dele nos inocentarmos... Bem visto.

    ResponderEliminar