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segunda-feira, 30 de outubro de 2006

Êxodus

Fui ver a última produção teatral do Aquilo. A peça chama-se "Êxodo Rural: Rural Industrial", com encenação de Bernhard Bub. Um espectáculo visualmente poderoso, graças a uma complexa estrutura cenográfica, em metal, onde foram acoplados vários maquinismos, instrumentos de percussão e adereços mecânicos. Decerto se pretendeu reproduzir um estaleiro de obra pós-industrial, onde as funcionalidades cénicas se multiplicassem. De realçar igualmente a banda sonora, que conseguiu evocar as ambiências pretendidas.
No entanto, notam-se aspectos menos conseguidos. Desde logo, ao nível da direcção de actores, sendo notório que estes, em alguns momentos, deambulassem de forma errática pelo espaço, numa completa descoordenação de movimentos. Dando a entender que não havia marcações específicas para esses períodos.
Por outro lado, o espectáculo enferma de um problema estrutural que já havia detectado nas últimas produções dos Fura del Baus: uma sucessão de efeitos - espectaculares, é certo - mas sem qualquer fio narrativo que os enquadre, como se o artifício valesse por si próprio. Ora, no teatro, o artifício só é entendível se ao serviço da naturalidade. De outra forma, o actor desaparece, substituído por uma série de automatismos de ordem técnica.
Mas há ainda um equívoco fundamental na arquitectura desta peça: uma ingenuidade tributária de Rousseau, que inquina definitivamente qualquer suposto propósito pedagógico associado. No texto que acompanha o espectáculo pode ler-se: Nós próprios, perante a onda industrial do progresso, temos a sensação que este desenvolvimento nos divide em duas partes e que nos poderá custar as nossas origens, a nossa cultura e até a nossa própria existência. (...) Por entre o barulho da "máquina" os humanos ainda procuram a sua sorte. Como se poderá depreender, este discurso sinaliza um retorno de 200 anos, transportando-nos aos luddites - um movimento nascido da Inglaterra, no início do séc. XIX, contra a mecanização da indústria têxtil e que promovia a destruição pura e simples das máquinas - e ao inefável bom selvagem. Ignora-se completamente a modernidade - com a sua apologia da máquina, a descentralização do objecto artístico, o nihilismo como condição moderna por excelência - propondo-se um retorno a uma naturalidade que a própria peça desmente, enquanto proposta artística.
Dois pormenores ainda.
Em primeiro lugar: a colocação da palavra Pátria, em letras gigantes, no topo da estrutura, como instância repressiva, é de um mau gosto inqualificável. Faria sentido há 30 anos atrás, no contexto da época. Hoje é um simples erro grosseiro de casting. Não é a "Pátria" que oprime, mas a avidez, a impunidade, a mediocridade sufragada, a desresponsabilização generalizada, os micro-medos que tomaram conta de nós, que infantilizam e armadilham o desempenho da cidadania.
Em segundo lugar, e como não podia deixar de ser, o "politicamente correcto" faz a sua aparição triunfal, neste excerto do texto atrás mencionado: Até que um muro de arame farpado cercou a Europa, fingindo a salvação do status quo e impedindo a entrada de outros povos, outras culturas mais pobres. Repare-se que não está só em causa a entrada de "outros povos" , mas também de "culturas mais pobres", assumindo-se um irresponsável e piedoso - embora camuflado - eurocentrismo assistencial, produto da mesma má-consciência que leva a relativizar o terrorismo, por exemplo, ou a desculpabilizar a hostilidade dos tais povos que não admitem a "diferença" da Europa.

Publicado no jornal "O Interior"

13 comentários:

  1. É inacreditável. Quem critica (e ainda por cima justifica a sua crítica) é logo acusado de mau?!!!
    Fui ver o espectáculo e é tal e qual o que o Gil diz: é só cenário, é só uma estrutura para embasbacar. Não há dramaturgia nem qualquer marcação: os actores andam por cima da estrutura sem qualquer sentido. É de uma pobreza que mete dó: nada têm a dizer a não
    ser meia dúzia de lugares comuns em voga há várias anos. Totalmente fora de moda, aquilo é um plágio do que o grupo alemão Antagon fazia!!! Só que ele fazia bem.! Neste caso oas actores do IPG lá andavam para cima e para abaixo, sem qualquer orientação. Que será feito do Aquilo que tinha textos e propostas claras e ousadas? Ainda por cima, se calhar estão convencidos de que o que fazem é vanguardista?? Só vale pela estrutura e mesmo essa é coisa vista há trinta anos.

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  2. Pois é, pois é! Coisas de encher o olho mas sem substância.

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  3. Nos processos de recepção das mensagens, interferem vários factores que determinam formas diferentes de percepção de um mesmo conteúdo, originando também interpretações diferentes.
    Seria bom analisar os factores temporais, como por exemplo, a sua situação no momento da recepção da peça; factores individuais, como por exemplo, a sua predisposição ao ver a peça, as suas intenções, entre outros.. que podem gerar interferências com as suas experiências anteriores e com as suas ideias pré-concebidas.
    Para quem concebeu o êxodo, a questão fundamental manifesta-se nas subjectividades que as imagens (visuais, sonoras, entre outras, provocam, nas relações dos vários elementos, na interpretação das formas nos seus contextos e na interacção entre essas mesmas formas e os significados.
    A representação de uma qualquer realidade está implicitamente relacionada com a entidade que a representa e/ou a exprime e a sua subjectividade e não com uma qualquer pseudo verdade unívoca e "totalizante" do mundo.
    Veja-se o ponto de vista dos jovens que conceberam a ideia/conceito/argumento e veja-se também o ponto de vista do encenador que, os explora através de linguagens diferentes.
    Eu que até não sou de cá falei com o encenador e o elenco... porque não o fez também?
    O que refere sobre as marcações supostamente aleatórias dos actores, não é verdadeiro.


    Não concordo com o anónimo. Diz que não há dramaturgia nem qualquer marcação???
    Relativamente ao grupo Antagon não deve conhecê-lo bem pois, não há semelhanças, quanto mais plágio...
    A necessidade de destruir o que existe revela provincianismo. Até faz mal a quem passa pela cidade. Foi sempre o mal desta cidade.

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  4. "Pouco falta para que se classifique os homens segundo as suas faculdades intelectuais tão como se procede com os minerais quanto à dureza, ou, de preferência, conforme a capacidade que têm de cortar e riscar os demais".

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  5. Meus Amigos,

    Nao vi o espectáculo e penso que ele existir é sempre algo bom num meio com pouca oferta cultural. Só vendo...

    Boa sorte para o debate.
    Duas achas para a fogueira: o termo Pátria estava lá em sentido negativo, ou mesmo a gozar? Se for o segundo caso vou já dizer a uns skin-heads que conheço para meterem a Guarda no mapa deles.

    E -- ao Gil -- que é que a expressao "culturas pobres" tem a ver com desculpar o terrorismo? É porque é uma expressão infeliz ou um pontapé na Gramática que implica que deixamos o cãozinho rafeiro morder-nos na mão? Por esse andar,com tanta bacorada que os políticos dizem, os Terroristas já deviam ter caças, porta-avões e bombas atómicas...ou há para aí um cheirinho de Intolerância pelos pobres de dinheiro e pelos pobres de palavras?

    Os parabéns a quem faz um espectáculo contra os Terroristas de Estado que nos obrigaram a sair do Campo e viver na Porcalhôa, cidade portuguesa que vai de Valença até Faro.

    André Bandeira

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  6. Como refere Miguel Torga, uma pátria é o espaço telúrico e moral, cultural e afectivo, onde cada natural se cumpre humana e civicamente. Só nele a sua respiração é plena, o seu instinto sossega, a sua inteligência fulgura,(...)

    A peça incomoda assim tanto? ou é o grupo em causa?

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  7. André:

    Como não viste o objecto do post,nem leste o texto de apoio, difícil se torna argumentar.

    No entanto, sempre te direi o seguinte:
    1. A expressão "culturas pobres" insere-se num contexto onde se diz: "Até que um muro de arame farpado cercou a Europa, fingindo a salvação do status quo e impedindo a entrada de outros povos, outras culturas mais pobres". É que, das duas uma: ou as outras culturas são todas "mais pobres" - o que não é verdade - ou a Europa tem a obrigação de acolher só as mais pobres, deixando de fora "as mais ricas". Com isso se misturando a necessária politica de emigração, que o autor parece identificar com "arame farpado". É esta a mesma visão irresponsável - sufragada em variados meios onde impera o politicamente correcto - que relativiza a ameaça real do terrorismo e o fundamentalismo que lhe subjaz. Sobre o assunto, já conhecemos o que cada um pensa, sendo que, no caso, tem uma incidência lateral.
    2. Quanto ao resto, sugeria um pouco mais de tranquilidade nos teus apelos. Que diabo, esta é uma simples questão de apreciação de uma peça de teatro. Não é uma questão bélica.
    3. Do contexto em concreto, posso-te informar melhor noutro local e noutro momento.

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  8. Anónimo/a das 20:47:

    Por hábito, não costumo responder a quem não dá a cara. Abrirei aqui uma excepção. Para dizer o seguinte:

    1.A crítica que fiz ao espectáculo é feita segundo uma argumentação sustentada, pública e identificada.
    2.Descobrir nela processos de intenções é tarefa inútil, mais apropriada para quem não tem outro tipo de argumentos.
    3.Após assistir a esta peça, como a qualquer outra, é na pele do espectador comum que faço os meus juízos de valor sobre os seus méritos, ou respectiva ausência.E dizendo sempre porquê.
    4. Mal andaria o teatro, se uma apreciação crítica seja devolvida e encarada como uma questão puramente pessoal de quem a faz.
    5. Centrando-se nesse aspecto risível, acabou V. Exa. por não apresentar nenhum argumento que respondesse de forma cabal aos meus.
    5 O que invalida qualquer crédito na sua resposta (?)e não resolve o problema que a encenação da peça não soube resolver.
    6. Não obstante, consegue resolver outro com que V. Exa. se ocupa.A saber, descobrir nas minhas supostas intenções - que parece conhecer muito melhor do que eu - a razão da crítica, não no seu objecto.
    7.O que permite, com alguma certeza, identificar V. Exa. como um excelso cultor de sofismas.
    8. Dá igualmente a entender que, se tivesse falado com "o encenador e o elenco", talvez tivesse ficado sobejamente esclarecido sobre as suas intenções e assim mudaria a apreciação que fiz.
    9. Confesso que a sua ingenuidade - ou outra coisa que se faz por ela passar - me surpreende. Um objecto artístico, qualquer que ela seja, foi criado para valer por si próprio. É essa auto-suficiência que o identifica e o protege, assim como protege quem o criou.
    10. Portanto, misturar as coisas é promover o "amiguismo",a promiscuidade acrítica, fechar a possibilidade da sua avaliação séria, embora subjectiva. No interesse, sobretudo, da obra apresentada.
    11.Em conclusão, esse seu "argumento" é patético e perigoso. Para seu conhecimento, são as qualidades humanas que sufragam a minha maior ou menor proximidade com os outros. As suas qualidades artísticas vejo-as no lugar próprio: o objecto onde se manifestam. Mesmo que essas qualidades se confundam, eu NUNCA AS CONFUNDO.
    12.Remata V. Exa. com a acusação de provincianismo.Parece ser dirigida ao anónimo a quem responde, mas como há uma identidade de razões, por ela respondo.
    12. Afirma que não é "de cá" e que,graças ao "bota-abaixo" sistemático - que identifica com a apreciação menos positiva da peça - a cidade "está como está".
    13. Comungo inteiramente consigo da nocividade desse mal que, não sendo local, aqui é transversal e notório. Só que errou V. Exa no alvo.
    14.Antes de mais, já deu conta de alguma crítica, uma que seja, na imprensa local, a um espectáculo apresentado na cidade? Aponte-me um exemplo, se faz favor.
    15. Certo que estou da resposta, andaria melhor V. Exa. em se congratular com o facto de alguém se dispôr a fazer uma crítica, de todo não gratuita, a uma realização artística local, sem se esconder e sem com isso obter qualquer benefício.
    16. Ao contrário do que julga, provincianismo significa, entre outras coisas, unanimismo acrítico, demissão de responsabilidades na criação e manutenção de um espaço público.
    17. Identificá-lo - ou à "necessidade de destruir o que existe" - com uma crítica fundamentada é, isso sim, um sintoma preocupante de...provincianismo.
    18. Afinal, para quem não é "de cá", que interesses tem a defender?

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  9. Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

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  10. Caro sereno:

    Neste espaço questionam-se ideias, não quem as transmite. Volte sempre.

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  11. Fui ver a peça. Também vi o que o Aquilo fazia antigamente. Em termos de qualidade e verdadeira ousadia, houve uma regressão assinalável.

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  12. Concordo com essa referência que é feita à Pátria. É caso para dizer: não havia nexexidade!

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