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domingo, 22 de outubro de 2006

All that sheet

Existem alguns autores por essa blogosfera com livre curso para lançar areia aos incautos. Um deles é João Miranda, escriba de serviço no Blasfémias. JM, como muitos "liberais", detesta a verdadeira liberdade e quem a reivindica. Para ele, "liberdade" significa unicamente não interferência do Estado na esfera económica. Só que ela tem que ser associada necessariamente ao aprofundamento da democracia e da igualdade. O núcleo duro das liberdades negativas tradicionalmente reivindicadas pela escola liberal aparentemente pouco lhe interessa. O que a autêntica liberdade (de criação e não só de consumo) realmente acarreta - livre arbítrio, coragem, criatividade, empatia com a vitalidade interior - são incomodidades descartáveis. Agora, a propósito da ocupação do Teatro Rivoli, lançou nova cruzada contra os "parasitas" da cultura, que criam para as "elites" com o rico dinheirinho de todos nós e, sobretudo, dos intrépidos liberais como ele. Ver aqui, aqui, aqui e aqui.
Por cá, já tinhamos detectado alguns intelectuais "desenvolvidos" com discurso semelhante. No propósito de todos, faltava criar mais uma linha da frente, esta traumática para os "liberais": a cultura. No fundo, temem as grandes criações do espírito. Temem-nas porque procedem de uma instância que, digamos, não podem quantificar. E além disso põe em causa a base com que construíram a sua vida. Sem o crivo do "divino" mercado. Suspeito que JM, como os seus correligionários, leram muito à pressa autores como James Buchanan. Para este autor, o problema político fundamental consiste em averiguar até que ponto o interesse particular pode ser limitado em função do bem comum. Segundo ele, tal restrição só pode admitir-se mediante um acordo derivado de uma decisão comum. Esta ligação umbilical entre democracia e individualismo, bem como a ideia de que, num mundo sem conflitos não haveria necessidade de delimitar direitos, procede de Hobbes, em quem o autor se inspirou grandemente. A ideia da "eleição pública" é boa, mas demasiado ingénua e praticamente fora de questão para além do universo anglo-saxónico e escandinavo.
No caso concreto da ocupação do Rivoli, é claro que o timing escolhido pelos ocupantes foi desastroso. Acabaram por dar um tiro no pé e, como efeito secundário, mobilizaram os sectores mais atávicos contra a "subsidiodependência". Parece-me óbvio, depois de analisar os números em causa, que o Teatro Plástico beneficiava de uma situação de privilégio, num equipamento público de uma grande cidade, e cuja reabilitação custou muito caro. Uma média de 30 espectadores por sessão, na sua última apresentação, é avassalador. Para além de que os resultados artísticos apresentados deixavam muito a desejar. Mesmo assim, deveria ser o MC a corrigir estas situações, penalizando os grupos subsidiados que não atingissem determinados objectivos, qualitativos e quantitativos. E intervir directamente no modelo de gestão que vier a ser escolhido para este, como outros equipamentos culturais, em consonância com a autarquia portuense. Mas é claro que JM e afins esfregaram as mãos de contentamento, perante este episódio. Fazendo dele o que não decididamente não é: uma bandeira.

PS: leiam-se as caixas de comentários dos posts mencionados. O pior da sociedade lusa está lá: a inveja, o provincianismo, o ressentimento ou a arrogância de classe ou de casta, as "tias" desocupadas e intriguistas, os grunhos do costume, com títulos académicos ou não. Enfim, uma mostra exemplar e edificante, um caldo que deveria merecer a atenção de politólogos e sociólogos.

3 comentários:

  1. Transcrevo aqui um comentário de bluewater68 a post idêntico, inserido no blogue "estados alterados", que mantenho no espaço do jornal "Sol" (http://sol.sapo.pt/blogs/aspalavras/
    default.aspx)

    "Boa tarde.
    Falando apenas concretamente no caso do Rivoli, concordo plenamente com o que escreveu no seu último parágafo.
    A ocupação, por mais nobres motivos que tivesse, de forma involuntária e também à custa das televisões, transmitiu uma ideia errada sobre os ocupantes. Ficou-se com a ideia que eram uns tipos arruaceiros - que, diga-se, não fizeram qualquer arruaça - sem nada para fazer e que invadiram um edifício público. Também concordo que deveria ter sido o MC a corrigir todas as situações que pudessem denotar aproveitamento de subsídios.
    Agora, o que vi, ou melhor, não vi, foi a cidade do Porto a vir para a rua defender este seu espaço nobre da cidade. A ideia com que fiquei é que pouco se importam com o teatro Rivoli. Isso é que é preocupante. Ou, como quem cala consente, talvez achem que o Rivoli ficará melhor com uma gestão privada. Será sso?
    -domingo, 22 de Outubro de 2006 13:55"

    23 Outubro, 2006 05:20

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  2. Mas eles não foram agora recebidos pela Ministra da cultura?

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  3. Indo ao encontro do que se diz no primeiro comentário, o que me espanta é o aparente desinteresse da população do Porto pelo destino de um local tão carismático como o Rivoli.

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