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sábado, 24 de junho de 2006

Diário de um Tolo - 3

Que possamos recolher alimento suficiente para rir o riso de deus. Como quem invoca algo numa oração interminável, em que já não interessam os factos, mas como a nossa memória fica por eles impregnada. Afinal, esquecer é só o princípio de uma corrida, com um louco a perseguir-me de navalha em punho. Talvez o destino insensato do viajante no deserto, onde os meus dons vão beber como um animal com sede. Saberei todavia reconhecê-los? Oxalá pudesse ouvir alguns passos, do outro lado. E o dia se movesse, lentamente, ressoando pelas paredes, pelos pátios, pelas brumas onde um novo tempo se espalha. Desse lugar poderia observar toda a minha vida erguendo-se como um rio de sangue:
numa tarde em que o céu se estendia sobre a lassidão dos meus pensamentos, daí emergindo uma espécie de irreversível fantasia, ora doce, ora ameaçadora, um reflexo possível daquele azul pálido, com pequenas nuvens alvas voando à superfície, através das copas desfolhadas das árvores em redor... Como seria estranha essa indizível estranheza! As palavras combinariam com um arruinado templo de Delfos, povoado de deuses solícitos ou punitivos, talvez um calafrio me percorresse até à ponta dos dedos, os pensamentos erguendo-se desordenadamente, como bolhas de água fervendo: existia, portanto, algo com que sempre teria de contar, algo de que me precaver, algo que subitamente pode saltar fora dos calados espelhos dos meus pensamentos...
Mas será possível que, naquela tarde de luz, no meio do que antes parecia nítido, se abrisse uma porta levando a outro mundo, imprevisível, desnudado, devastador? Será possível que entre uma transparente e firme casa de vidro e ferro e uma outra, onde se deambula por confusos corredores repletos de vozes, não exista apenas uma passagem, mas que as suas fronteiras se toquem, secretas, próximas, podendo ser ultrapassadas a qualquer momento? E, ainda assim, as palavras, essas palavras, em sobressalto, estendidas eternamente por milhares de sinuosidades, como uma escada sem fim e sem objectivo… Sei agora que é do coração estéril que extraio toda a força, toda a confiança que aprende a não desesperar de nada.

Foi assim: vejo ao longe um barco arribando contra a corrente, as velas colhidas nas cruzetas, navegando em silêncio. Nunca saberei para onde. Nem ele saberá que foi um mensageiro do tempo que não há-de vir.


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