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terça-feira, 22 de setembro de 2009

Tábua de marés (43)


Não há que abusar dos adjectivos, bem o sei, da mesma forma que não se deveria abusar da comida ou do álcool. Todavia, o mundo está cheio de obesos e dipsómanos. Verdad? Ora, não é exactamente a esta adição gramatical que me refreia. Quando os adjectivos me dominarem, farei uma cura de desintoxicação e poderei esquecer-me para sempre deles. Entretanto, vou flutuando sem esforço de maior, rodeado de uma campina aprazível, que faz lembrar a Toscânia no seu melhor. Entre um mergulho e outro, comento mentalmente a sessão cinematográfica da noite anterior. Depois de um opíparo jantar nas cercanias. Trata-de de Slumdog Millionaire (Quem quer ser Milionário?), a oscarizada película inglesa passada na Índia. Paul Eluard, o poeta francês amante da simplicidade, o mesmo que soube descrever numa única estrofe toda a ambiguidade do mau estudante, esse que "diz não com a cabeça, mas sim com o coração" (ou era ao contrário?), escreveu também algures que "há decerto outros mundos, mas estão neste". É uma frase tão concisa e clara que, há alguns anos, foi utilizada na publicidade televisiva, onde aparecia uma piscina privada ainda mais convidativa do que aquela em que me encontrava. É que a câmara lenta tem um poder subjugador, hipnótico: embeleza até os tarantinianos tiros na cabeça com abundantes salpicos de sangue e miolos. É claro que tinha ficado bastante impressionado com o filme do concursante hindu; talvez porque conhecia muito bem dois dos mais recorrentes métodos de tortura argentinos: a imersão sem escafandro e os choques eléctricos. Neste caso, além da cegueira com uma colher de pau, novo para mim, e o mergulho na merda humana, toda uma metáfora, a película de Danny Boyle ensina-nos como se pode sair de toda essa desgraça. Precisamente com a ajuda de um golpe de sorte que nos faça milionários e a companhia de um amor "que te cuide, que te cuide". Love is a magnificent thing, já se sabe, sabêmo-lo todos, e graças a ele, ao maravilhoso, angélico amor, um documental de ritmo acelerado sobre a miséria actual nas grandes urbes pode converter-se num conto de fadas com Happy End, ao estilo Bollywood. Suponho que para pagar de alguma forma tanto aprazível, apiscinado prazer burguês, decidi ver no dia seguinte outro blockbuster de forte conteúdo social: Gomorra. Não vou por-me a criticar agora a redundância de certas cenas, nem a confusão que produz um casting de actores secundários, supostamente não profissionais com rostos familiares, nem sempre diferenciáveis. O filme é certamente digno e não oferece possíveis finais felizes: os corruptos sê-lo-ão ainda mais, os que pretendam um percurso autónomo despertarão convertidos em cadáveres crivados de balas. Os resíduos tóxicos cobrirão o mundo, temperando com cianeto os nossos melões, e uma Grande Camorra Globalizada acabará por dirigir cada segundo das nossas vidas, através da ambição, da necessidade, da ignorância e, sobretudo, do medo. Ainda que a minha já manifesta adição aos adjectivos possa levar a mais equívocos, queria ainda referir outro filme maior, The Cooler (Má sorte, 2003), com Maria Bello, Alec Baldwin y William H. Macy como cabeças de cartaz. Azar, dinheiro, máfias e finalmente amor; novamente um grande amor que tudo vai mudar. Las Vegas é um lugar iluminado em excesso, onde se passeiam um punhado de pessoas com demasiada ambição e pouco discernimento. À margem, tentando não cair ruidosamente do tapete, encontram-se os perdedores de sempre. Interpretados com algum brilhantismo por Macy e Bello, estas duas personagens quase normais merecem melhor sorte. De tal forma que o guionista e realizador, Wayne Kramer, um bom tipo, criativo, audaz e inteligente, decide então presenteá-las, permitindo-lhes escapar do círculo infernal onde se haviam encontrado. Pela minha parte, depois de farejar, graças ao cinema, estes outros mundos não tão distantes, decidi que o lugar onde estou, o meu pequeno universo quotidiano, não se parece demasiado com esses infernos. De sorte que ainda não me atrevo ainda a chamá-lo de paraíso. Mesmo não tendo, para já, relação alguma com o conhecido tecno-purgatório de Huxley.

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