Chang Kwai Caine deu-me a ideia, quando era mais novo, que, na violência da vida, há formas não violentas de resolver uma existência cheia de angústias. Mas a não-violência não é um impulso, uma coisa fácil, ou um entusiasmo. Implica esforço, renúncia, muita ajuda de fora de nós e de fora do nosso Pensamento. Assim, lembro-me de duas cenas do filme «Kung Fu», com o qual a personalidade de David Carradine se confundiu: uma em que ensina os pacifistas Mormon, que renunciaram a pegar em qualquer tipo de armas, a tirarem as armas aos agressores e outra em que, sentindo um desejo de carinho e companhia de uma mulher casada e sozinha, esse homem solitário e perseguido que Carradine representava, passando uma noite de insónia num estábulo, renuncia humildemente e conforma-se com o seu longo caminho de peregrino, despedindo-se na manhã seguinte, dessa mulher, com um gesto de paz, em que ambos sabem que têm de renunciar, deixando, ainda assim, mais um gesto de paz entre dois seres que são a Humanidade inteira. E lembro-me neste mundo do espectáculo e da expressão, em que nos esquecemos tantas vezes que as palavras se movem e ondulam como o nosso corpo, do sorriso sempre bonito de Cat Stevens, agora no rosto do velho Yussuf Islam, algures num disco que editou e onde repete muitas vezes «dust and boots, boots and dust».
E quando ouço alguém arriscar tanto numa Universidade do Cairo, vejo os limites das palavras. Todos as vêem mas, entre elas, como umas pedras do chão, algumas hão-de servir para construir uma barreirita contra o vento, ou para fazer um fogo na noite fria e não apenas para atirar à cabeça duma pobre somali, que, uma vez tendo sido violada por homens armados quando ia visitar a mãe, se queixou à polícia e foi acusada de adultério. E hão-de servir, para perceber que não somos todos iguais e que o nosso tempo nesta terra é como o trajecto de uma avião que não teve sorte, e que nem todos gostam de andar nus e talvez se sintam melhor com um lenço na cabeça que escolheram de uma longa tradição em que confiaram. É que a liberdade não me pode ser imposta, como uma não-violência violenta, que cada um tem o seu tempo e o seu caminho e que, como posso ser livre, se não confio naquilo que escolho e faço meu? E sei também que os que tentam conciliar interpretações de Deus tão diferentes, dum mesmo Deus que serve de desculpa para tantos entusiasmos violentos, se arrisca, com o seu bom coração, a tê-lo atravessado por uma bala, sem que nada tivesse mudado entretanto e o amor egoísta da multidão o esqueça depressa, trocando-o por um outro amor qualquer, em permanente excitação. Pelo que, depressa aquele que esteve no topo, entre palmas e foguetes, uma noite escura ficará sozinho e pedirá a Deus «Pai, afasta de mim este cálice… Mas se é essa a Tua vontade…». E, então, o avião Airbus, apesar da sua perfeição técnica, não se conseguirá mais levantar. Na noite escura, tão escura «qui nem é bom fálá», o meu coração duvida de Deus e o meu coração junta-se àqueles que, não crendo em Deus, são tocados pela loucura e pelo desespero, sendo guiados por um grito mudo ao Céu. Algures numa paisagem cheia de poeira onde «Kung fu» Caine volta a partir sozinho e perplexo, olho as minhas botas caminhando pelo pó. Yussuf Islam, Cat Stevens…reza por mim esta noite.
André
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