José Calvário, maestro, morreu hoje. E eu, hoje cantei, no meu caminho difícil. Não cantei nenhuma canção difícil, como a «Internacional», ou «Dizem que amor de Estudante». Ouvi canções brasileiras. Porque a minha alma quer cantar. Cantam os homens no trabalho diário, cantam os que vão ser fuzilados, cantam os que resistem em Teerão. Cantam os pássaros contra a noite. José Calvário já estava em estado vegetativo desde o fim do ano passado e ia passeando de hospital em hospital até que alguém lhe desligasse a máquina. Certamente que quem o amava, lhe fazia companhia e imaginava que naquele corpo arfante, em respiração artificial, se geravam canções como «E depois do Adeus» ou essa canção tão bela «No teu poema». José Calvário orquestrou essa coisa maravilhosa que se chamava «Canção portuguesa» e que outros chamaram nacional-cançonetismo mas que mesmo assim milhares de nós cantámos nessas jornadas em que fomos todos um, apesar das desconfianças, das ingenuidades, das santas estupidezes e que foi o 25 de Abril. Nesse tempo amávamos, amávamos de flor na boca, com um coração paciente, duradouro, tenaz, capaz de esperar e de dar, de renunciar até ao Amor por um Amor maior. Nesse tempo éramos todos como o Fernando Rocha, que conta piadas ordinárias, mas sobre quem o Espírito Santo soprou, pois, uma dia destes salvou um homem de morrer afogado no Rio Douro, o mesmo Rio Douro onde ele, catraio, saltava para apanhar moedas aos turistas. José Calvário era pequeno, franzino e irritável. Não foi um génio. Tinha um rosto belo como esse rosto dos portugueses que ardem sempre sem fim, em busca de uma Paz que nem a História, nem o Destino lhes dá. Um rosto belo como o de Ana Zanatti, que confessou a sua homossexualidade (e não o seu lesbianismo) ao fim de tantos anos, certamente amargos e que me deixou, pelo menos a mim, desgostoso, por um rosto tão belo não ter sido amado por quem o merecesse. José Calvário conduziu a orquestra do Portugal que se recusa a deixar de cantar. Não inventou as canções, não as revolucionou. Apenas as trouxe até nós para que as pudéssemos cantar.
E, hoje, pensando em José Calvário, canto em silêncio neste Mundo bárbaro, com os que marcham em silêncio em Teerão. Que lhes cresça por dentro essa força sem fim, que é a força do Mar, que vai e vem e que perdura, sempre generoso e humilde, sempre inesgotável e sempre lá, quer o dia seja radioso ou a chuva rasgue o Universo. Ele chamava-se Zé Calvário e vós sois um Povo que se prepara para o subir. Povo Calvário, vamos por ali acima, pela aquela ladeira medonha, mas vamos a cantar.
André
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