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sábado, 14 de fevereiro de 2009

Recordas-te de amanhã ?

(para uns Estudantes cansados de lutar)

Maria Leonor Fonseca Pimentel, antes de ser enforcada, em 1790, em Nápoles, foi-lhe concedido um último pedido. Pediu um café. Não foi fácil morrer, para Maria, como não é para ninguém. Depois de ser a mais brilhante dos jovens revolucionários da República partenopeia, em Nápoles, e de ser a única Mulher verdadeiramente activa, tinham-na metido num navio para ir exilada para França, em troca da rendição dos revolucionários que se dispunham a vender cara a vida numa torre. O Bispo que comandava as tropas de assalto, entre as quais iam portugueses e russos, pediu que lhes poupassem a vida ou não fosse ele cristão, lutando ferozmente pela sua bandeira mas pronto a perdoar, uma vez a guerra acabada. Foi Lorde Nelson, o almirante inglês, vesgo e maneta, apaixonado por Lady Hamilton, a qual invejava a Pimentel (pobre mulher que nem sabia que podia ser invejada!), quem a mandou tirar do barco, a devolveu ao tribunal do rei mau e deu ordens para que a enforcassem, negando-lhe o pedido de ser decapitada, pois se era aristocrata, era também portuguesa e revolucionária. Maria pediu ainda que lhe atassem a saia para que quando o seu corpo balançasse do alto do madeiro, a gente não se risse da sua nudez. Esse pedido não lho concederam e apenas disse, quando soube que ia morrer, depois de estar quase a partir para a liberdade: talvez um dia valha a pena recordar estas coisas.
Maria casou infeliz e à força porque era pobre. Teve um filhinho que morreu bébé e a quem dedicou dois dos seus mais bonitos poemas. Por fim, amou o jovem Gennaro Serra di Cassano, um dos chefes da revolta, muito mais novo do que ela e que lhe não correspondeu senão com uma grande amizade, mas que se levantou da sua cama virgem, para ir morrer com ela. A porta por onde saiu para morrer ainda hoje está fechada e os seus descendentes não a abrirão até ao dia em que a Camorra acabar.
A Tertúlia Académica Libertas nasceu contra as Máfias, a dos cargos, a das influâncias, a máfia dos filhos contra os enteados, a da hipocrisia dos que dizem que são democratas mas se fazem suceder uns aos outros como se fosse uma monarquia, sem El-Rei e sem Nobreza nenhuma, dizendo para acalmar a Gente em fúria que somos todos iguais, que todos temos uma oportunidade.
Por isso, a Tertúlia se escondeu por trás dum pano negro, por isso se escondeu debaixo duma capa, quente como a noite de Verão traçada pelos espasmos da madrugada. Para quem viu o anoitecer dos sonhos do 25 de Abril, do fim da generosidade de Portugal, só restou mesmo esconder-se na noite, acordado enquanto todos dormiam, como o vampiro que amava a Deus e esperava ansiosamente pelo Sol, para o ver ao menos uma vez, antes de desaparecer.
Por estes valores, a Tertúlia foi existindo e passando como um velho diário de bordo, de mão em mão. Às vezes é fácil definir contra quem nos batemos, o riso cresce-nos das mãos, as capas unem-se como as sombras dos guerreiros, aramados com o que conseguiram juntar, vindos de todo o lado, sobre a colina. Outras vezes a desolação é grande, parece que o inimigo está dentro de nós, ou que a batalha se passa miseravelmente dentro de nós, a Segunda-feira contra a Terça, o Sábado contra o Domingo, a manhã contra a noite e a tarde contra todos.
Como muitas vezes nos sucedia, o inimigo estava afinal na própria batalha. A Faculdade, o país, o Ministério da Educação, a «sociedade», são todos um tigre de papel, e nós não somos capazes de ditar a agenda, de riscar um fósforo. Mas porque não somos capazes de juntar um Pensamento ao outro e unir a terça à quarta-feira, e ambas à quinta, como uma testa de ponte firme sobre o vazio, à espera de Domingo.
A Tertúlia não arranja empregos, nem dá consultas de bruxa. Uns foram por ali e outros foram por acolá. Mas muitos ficaram com carácter, que é um pau que serve para muita coisa. Uns foram abaixo, outros vieram ao de cima. Uns ficaram à luz e outros ficaram à sombra. Foi o que a Tertúlia lhes deu para se manterem de pé. A uns deu-lhes apenas o Sofrimento, mas quem sofre, mesmo sem saber porquê, está vivo. Deu-lhes carácter.
As batalhas, as razões para os farrapos negros se juntarem, como as asas da águia se unem de manhã, nos extremos do horizonte, foram várias e muitas, algumas delas nem já nos lembramos. Mas essa força da sombra que cresce em busca da luz do dia, ficou.
A crise é grande, provavelmente maior do que parece, como uma ferida de bala, de fora, parece um sinalzinho vermelho mas a hemorragia dentro corre devagarinho, como uma dor e uma fraqueza dançando um tango sem fim. As promessas ainda estão coladas à parede, na Publicidade da TV, nas montras dos bancos e das agências de viagem, até ainda estão nas respostas rápidas e na conversa de chacha.
Mas parece que o arrepio de frio cresce nos intervalos, assobia por cada frincha. Não vão ser as eleições que vão resolver este Inverno de calendário, que vai durar até não se sabe quando. Com um Inverno assim, a Tertúlia deve-se atrever a ditar ela o calendário e, antes dos exames para o pessoal todo baixar a garupa, em duros exercícios de resulatdo bem incerto no mercado de emprego, é preciso riscar o fósforo.
Os Estudantes são um actor colectivo da História de Portugal, um país com nove séculos. Mesmo os Estudantes dos Partidos são eles quem dita a agenda ao Partido, não é o Partido que lhes dita a Agenda. Gritava um nobre desesperado, uma vez, na Itália dos reinos e principados, quando toda a gente se escondia em casa com medo de um Tirano qualquer: « Passei pela praça e só um punhado de estudantes se batia contra os Guardas». Há quem diga ( e que sabe) que as Civilizações duram em média mil anos. Já estamos a chegar ao prazo, em Portugal. Outra se seguirão, a seguir a nós, as nossas pedras e calhaus serão ou não usados em edifícios que não conhecemos como serão. Mas entre a Praça velha, onde jaz o Estudante que se atreveu a enfrentar sozinho os Guardas e a rua nova, nós continuamos. Quem marcha, somos nós, não são as pedras.
Por isso mesmo, que a Maria, pequenina, portuguesa, muito nobre de coração, cheia de lágrimas e tão pobre que no espólio de condenada não sabiam arranjar um nome para a batina negra que vestia, disse: um dia valerá a pena recordar estas coisas.

André

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