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segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Tábua de marés (9)

“Maria e o Pai” (1982)
Realização: Maria Lino
Director de Fotografia: Mário Carvalho

Duração: 83º

Pequeno Auditório do TMG, 28 de Outubro

Este singular documentário foi filmado no Feital, aldeia natal da autora, onde trabalha e reside actualmente. Trata-se de uma aldeia do concelho de Trancoso, vila onde é registada uma sequência da feira local. A obra foi exibida na edição do mês passado da tertúlia cinéfila Janela Indiscreta. Seguiu-se um encontro informal entre o público e a autora, que falou naturalmente da obra. A escolha processou-se em óbvia complementaridade com a notável exposição de trabalhos da Maria Lino, notabilizada como escultora, que decorreu na sala respectiva daquela instituição, até 2 de Novembro, intitulada “Escultura – espaço – linha”. O filme partiu de uma ideia que a autora fez chegar à equipa técnica, tendo o projecto sido financiado pelo Filmbuero Hamburgo – Alemanha. O que dizer deste objecto cinematográfico? Antes de mais, as ressonâncias bíblicas do título chamam logo a atenção. Mas percebe-se desde o início que o fio condutor da narrativa é o reencontro da artista com o seu passado, filiado na sua aldeia. Aqui acabam as coincidências, mas permanece a única hierofania: o reencontro com as tradições, os saberes, as paisagens, os cânticos, as pedras, os rostos vincados, o trabalho, as partes de um todo que nunca se vê, mas que todavia se pressente. Nesse crepitar de memórias cruzadas existe uma personagem chave: o pai da autora. Que não é de todo uma figura simbólica, mas alguém que é apresentado sem qualquer preocupação específica de lhe ser atribuída uma “densidade” e um “peso”. É apresentado tal e qual é: o fiel da balança entre o passado e o devir. Igualmente capaz de uma tirada desconcertante ou de retirar um verso da algibeira para qualquer momento. O extraordinário encontro entre dois mundos. Por um lado, a tradição, a rudeza da vida, a cacofonia da festa. Do outro, a modernidade, o tempo descontínuo, o arenque fumado e, não resisto à imagem, a persistência do olhar. É esse precisamente a matéria-prima antropológica onde o filme vai buscar o seu fulgor narrativo. Em “Maria e o Pai” coexiste uma preocupação documental pura, de procura de um registo fidedigno do objecto, com um espaçamento de ordem onírica, envolvendo ou não uma manipulação na montagem. A célebre sequência do suicídio dos lacraus é disso prova. As imagens são poderosíssimas, razão pela qual não me pareceu adequado “metê-lo” no meio de outra sequência, com a qual nenhuma ligação, real ou simbólica, é líquido estabelecer. Permanece o seu poder evocativo da crueldade, num registo muito semelhante ao da cena inicial do cult movie “The Wild Bunch”, de Sam Peckinpah, onde algumas crianças imolam pequenos répteis no fogo. Por outro lado, para além do que já se disse, nota-se ainda neste documentário uma preocupação política. A autora não pretende unicamente reencontrar as suas raízes, registando-as. Quer também que os seus habitantes experimentem desenhar e pintar, comungando da sua arte. Mas também, como contraponto, expô-los a essa mesma arte que deixou de captá-los enquanto memória e mais como figuras suspensas no tempo.

Publicado no jornal "O Interior", em 6 de Novembro

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