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quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Gavotte (5)


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Até agora, a análise de "As Benevolentes", de Jonathan Littel cingiu-se ao universo da narrativa, ao enredo, às perplexidades de um tempo e de um regime: o nacional-socialismo. Faltava ainda colocar a pergunta fundamental: como foi possível "aquilo" no país que amava Schubert e idolatrava Goethe? O que levou a que a Bildung, ou seja, a seriedade e o radicalismo espiritual da cultura alemã, a sua modernidade, tenham conduzido à barbárie? Para tentar responder, necessário se torna tomar algumas precauções. É que uma coisa é falar do colapso moral de Auschwitz e outra, bem distinta é descrever uma tradição literária e moral que desaguou em Auschwitz. Mas que podia ter originado outra experiência, menos radicalizada do que o fantasma totalitário que se apoderou da Europa durante os anos 30 do século passado. Da Europa e não só da Alemanha, é bom repetir. As conexões entre causa e efeito colocam sempre uma questão muito delicada na construção do relato histórico. Em primeiro lugar, porque tendem a introduzir um elemento de necessidade onde impera, se não a liberdade, pelo menos o acaso. Depois, porque levam a que todo um processo apareça retroactivamente sobrevalorizado por um facto que essa sobrevalorização encara como fatalidade. O excesso de telos retrospectivamente reconstruído distorce o sentido típico, aleatório, polivalente, dos fenómenos que o presente vai produzindo. Convertendo essa vastidão numa imensa flecha que converge num único lugar: o grande centro de gravidade que se apodera do relato e, quiçá, da sua própria veracidade. É um trabalho de grande perspicácia aquele que se exige ao historiador: distinguir entre as causas realmente relacionadas, os elementos contingentes e os elementos completamente livres que configuram a base das suas hipóteses. Salvando-se assim do poder de atracção que certos factos exercem sobre esse material. Não há fatalismos na História. As tendências anteriores aos factos devem ser interpretadas com muita cautela. Sobretudo se essas tendências implicam uma leitura tendenciosa. Talvez seja desta tentação que a obra nos pretende prevenir. Usando de uma suprema elegância romanesca. Auschwitz e o nazismo funcionam, sem dúvida, como um campo magnético, capaz de condicionar muitas leituras. Mas é esse precisamente o triunfo póstumo dos nazis. Sobre o qual haverá que reflectir sem preconceitos. Não porque, de facto, se trate de uma vitória póstuma, mas porque é de acolher a possibilidade de que uma coisa - a cultura literária e moral alemã dos séculos XVIII e XIX - não tenha nada a ver com outra - o holocausto, o totalitarismo e a guerra de extermínio. E aqui convém distinguir: uma coisa é a afirmação de Adorno acerca da impossibilidade da poesia depois de Auschwitz e outra, bem diferente, é a obscuridade que Auschwitz projecta antes de si, retroactivamente. Transformando a construção da modernidade cultural na Alemanha como um caminho até ao holocausto. Essa sobredeterminação dos factos em função de um fim, tão monstruoso quanto ilógico, converte-os em algo que participa dessa irracionalidade, em algo inútil do ponto de vista da visão da Bildung alemã como um processo com potencial civilizador. Na verdade, esta não tinha esse propósito, no sentido pacificador, pluralista e democrático a que tendemos a associar a ideia de civilização. Uma ideia supostamente francesa, que aparece contraposta a um conceito bem alemão: a Kultur. Ora, a função desta não era tornar as pessoas melhores, satisfazer a utopia de uma cultura emancipadora, humanista, mas sim tentar evitar que algumas delas não soçobrassem no processo de individuação e socialização. (continuação)

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