Só não muda de ideias quem nunca as teve. Nesta fórmula coexiste a crueldade da simplificação e uma espécie de brilhantismo espertalhaço com que se aliviou uma consciência a precisar de uns mimos extra. Todavia, a tirada é justa, mais do que correcta. "Tudo isto a propósito de quê?", já deveis estar a perguntar (isto é, a meia dúzia de moicanos que ainda me lêem). Ora bem, nada de sustos, pois trata-se de filosofia pura. Ou seja, da natural e saudável evolução do ethos, como diria JPP. Ou, trocado por miúdos, de como as ideias propulsionam e resultam de uma procura. Sinalizam os tempos fortes e os fracos. Instalam uma prática ou corrompem-na. São ensaios para a dúvida e sofás para o desconforto.
Portanto, nada melhor do que uma história. Na cidade onde vivo, existe um amigo com quem mantenho saudáveis divergências de pormenor, firmadas desde inflamadas campanhas políticas em comum, durante a juventude. Há pouco, percebi que, afinal, o pormenor tinha dimensões pantagruélicas. Claro que, do ponto de vista da defesa intransigente das liberdades e da rejeição das ortodoxias morais, nem uma dissonância. O problema está noutro local: do lado dele, o percurso óbvio de uma tarimba política de base, repetida ad nauseum, com as suas adaptações forçadas, o verbo fácil e automatizado, a subalternidade não assumida perante quem realmente dá as cartas, a inconsistência programática, a cristalização em meia dúzia de slogans mal digeridos, uma inocência barroca e provinciana. Pela minha parte, sempre cultivei um descomprometimento absoluto com a partidocracia, a preguiça cosseryana, a experimentação como a única pedra de toque, a mastigação lenta das ideias trazidas pelo poço do tempo. O resultado, naturalmente, manifestou-se. O meu amigo continua preso à política como uma espécie de acampamento amistoso de facções rivais, com um cheirinho conspirativo, mas pleno de animação colegial. Um meio termo entre as reuniões republicanas descritas pelo Eça em "A Capital" e a utopia sem esforço da acção determinada pelo cálculo. Tudo supervisionado por um Baden Powell que se quis, à força, banir. É este o seu cenário de eleição, onde reivindica as palavras de ordem de sempre. Pela minha parte, aconteceu a "desgraça": li abundantemente Nietszche, Hannah Arendt, Montaigne, Tocqueville. E levei-os muito a sério! Ora bolas! Claro que também comprava as revistas "Gina" e "Tânia", em pacotes de três exemplares, embrulhadinhas em plástico, num quiosque manhoso dos Restauradores. Mas essa é uma história que ficará, se calhar, para outro texto... Mantive-me pois afastado de qualquer hipótese de uma carreira política e muito menos partidária. Mas não do labor público, naturalmente. Enquanto o meu amigo, por seu turno, se ia "educando" nessas escolas de "virtudes" em que se tornaram os partidos políticos e sucedâneos.
É claro que a divergência acontecia não só na forma como no conteúdo. Há pouco tempo, publicou ele uma crónica num jornal local, a propósito de um comício onde participou e que juntou parte da esquerda conservadora no Teatro da Trindade. O tom era claramente aquele que eu chamo da esquerda sindicalista. Passo a explicar: eis que um intérprete da sofreguidão popular aparece e clama, em nome da clientela, isto é do "povo", ou dos "trabalhadores", por mais isto, mais aquilo, mais dinheiro, mais subsídios, mais regalias, mais assistência, mais polícias na rua, mais salários, quer criar um país constituído por 10 milhões de assistencializados, calimeros insuflados por um estado providência que ninguém quer pagar, que ninguém diz como pagar, que ainda por cima troçam da verdadeira, da magnífica e produtiva preguiça - a dos personagens de Cossery, aquela dos que realmente reflectem sobre o mundo em que vivem - que preferem cidadãos a quem é negada a iniciativa económica, a iniciativa artística, a iniciativa cívica, pastoreados à força por vanguardas de burocratas que tudo dizem assegurar e nada resolvem, sacerdotes do óleo usado, da tecnologia ineficiente, do falso debate, um mundo isolado, planificado, onde quem grita mais alto é atendido primeiro. Esta histeria suburbana, isolacionista, demagógica, nada tem a ver comigo. Hoje é preciso exigir menos, em vez de pedir mais. É necessário que os entraves à criação de riqueza sejam mínimos. Que os sistemas políticos existam para defender os indivíduos e não os grupos e as corporações. Que a cultura crie os seus próprios públicos. Que a liberdade de criação valha muito mais do que a reivindicação da continuidade. Percebi, nesse dia, a distância que me separa desse universo ferrugento, em desagregação. O tal que o meu amigo, e mais uns poucos, acreditam ainda ser o cenário do futuro.
Portanto, nada melhor do que uma história. Na cidade onde vivo, existe um amigo com quem mantenho saudáveis divergências de pormenor, firmadas desde inflamadas campanhas políticas em comum, durante a juventude. Há pouco, percebi que, afinal, o pormenor tinha dimensões pantagruélicas. Claro que, do ponto de vista da defesa intransigente das liberdades e da rejeição das ortodoxias morais, nem uma dissonância. O problema está noutro local: do lado dele, o percurso óbvio de uma tarimba política de base, repetida ad nauseum, com as suas adaptações forçadas, o verbo fácil e automatizado, a subalternidade não assumida perante quem realmente dá as cartas, a inconsistência programática, a cristalização em meia dúzia de slogans mal digeridos, uma inocência barroca e provinciana. Pela minha parte, sempre cultivei um descomprometimento absoluto com a partidocracia, a preguiça cosseryana, a experimentação como a única pedra de toque, a mastigação lenta das ideias trazidas pelo poço do tempo. O resultado, naturalmente, manifestou-se. O meu amigo continua preso à política como uma espécie de acampamento amistoso de facções rivais, com um cheirinho conspirativo, mas pleno de animação colegial. Um meio termo entre as reuniões republicanas descritas pelo Eça em "A Capital" e a utopia sem esforço da acção determinada pelo cálculo. Tudo supervisionado por um Baden Powell que se quis, à força, banir. É este o seu cenário de eleição, onde reivindica as palavras de ordem de sempre. Pela minha parte, aconteceu a "desgraça": li abundantemente Nietszche, Hannah Arendt, Montaigne, Tocqueville. E levei-os muito a sério! Ora bolas! Claro que também comprava as revistas "Gina" e "Tânia", em pacotes de três exemplares, embrulhadinhas em plástico, num quiosque manhoso dos Restauradores. Mas essa é uma história que ficará, se calhar, para outro texto... Mantive-me pois afastado de qualquer hipótese de uma carreira política e muito menos partidária. Mas não do labor público, naturalmente. Enquanto o meu amigo, por seu turno, se ia "educando" nessas escolas de "virtudes" em que se tornaram os partidos políticos e sucedâneos.
É claro que a divergência acontecia não só na forma como no conteúdo. Há pouco tempo, publicou ele uma crónica num jornal local, a propósito de um comício onde participou e que juntou parte da esquerda conservadora no Teatro da Trindade. O tom era claramente aquele que eu chamo da esquerda sindicalista. Passo a explicar: eis que um intérprete da sofreguidão popular aparece e clama, em nome da clientela, isto é do "povo", ou dos "trabalhadores", por mais isto, mais aquilo, mais dinheiro, mais subsídios, mais regalias, mais assistência, mais polícias na rua, mais salários, quer criar um país constituído por 10 milhões de assistencializados, calimeros insuflados por um estado providência que ninguém quer pagar, que ninguém diz como pagar, que ainda por cima troçam da verdadeira, da magnífica e produtiva preguiça - a dos personagens de Cossery, aquela dos que realmente reflectem sobre o mundo em que vivem - que preferem cidadãos a quem é negada a iniciativa económica, a iniciativa artística, a iniciativa cívica, pastoreados à força por vanguardas de burocratas que tudo dizem assegurar e nada resolvem, sacerdotes do óleo usado, da tecnologia ineficiente, do falso debate, um mundo isolado, planificado, onde quem grita mais alto é atendido primeiro. Esta histeria suburbana, isolacionista, demagógica, nada tem a ver comigo. Hoje é preciso exigir menos, em vez de pedir mais. É necessário que os entraves à criação de riqueza sejam mínimos. Que os sistemas políticos existam para defender os indivíduos e não os grupos e as corporações. Que a cultura crie os seus próprios públicos. Que a liberdade de criação valha muito mais do que a reivindicação da continuidade. Percebi, nesse dia, a distância que me separa desse universo ferrugento, em desagregação. O tal que o meu amigo, e mais uns poucos, acreditam ainda ser o cenário do futuro.
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