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domingo, 6 de julho de 2008

Crimes exemplares - 23

Um belo dia, G. Singh deixou o Punjabe, no sopé das montanhas do Norte da Índia. Debruçadas sobre os arrozais em socalco e a linha do Ganges no fio do horizonte. Era adepto da religião dos sikhs, uma espécie de meio termo entre o hinduísmo e o sufismo islâmico. Andou pela Europa, numa diáspora mercantil apanágio dos seus antepassados. A ausência dos gurdwaras, os templos sikhs, nunca foi para ele, ou para a sua família, motivo de preocupação. Como era um amritdhari, ou seja, um iniciado na ordem Khalsa, usava longas barbas e o tradicional turbante cor de laranja. Motivo pelo qual, depois do 11 de Setembro, era brindado frequentemente com insultos aqui irreproduzíveis. Não há nada pior do que a ignorância arregimentada pela estupidez. Numa bela tarde de Maio, Singh chegou a Portugal. Não demorou a instalar-se, com a família, numa pequena cidade de província. A vida não lhe estava a correr nada mal e o haumai estava cada vez mais longe. Num certo fim de tarde, circulava na sua carrinha em direcção a casa. Ia devagar, como habitualmente. Dessa vez, porém, atrás dele seguia um condutor que não se cansava de apitar, gesticular com veemência e lançar alguns impropérios. O outro prosseguia, imperturbável. Enquanto o frenesi do homem de trás aumentava de intensidade. Ao chegarem a um semáforo, Singh saiu do carro, mantendo a compostura de um príncipe. Acercou-se do outro e, sem uma palavra sequer, fez-lhe um profunda vénia. Perante o desassombro do acto, o frenético apitador deve ter ficado sem pinga de sangue. Pois arrancou de imediato, cabisbaixo e sem esboçar sequer uma reação.

NOTA: Este episódio foi por mim testemunhado há cerca de um mês atrás. Todo o enquadramento foi obviamente ficcionado.

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