Um oportuno reparo de João Tunes, quanto à impunidade disciplinar dos médicos que, sistematicamente, não cumprem os horários de atendimento nos Centros de Saúde, transportou-me para uma realidade similar, que conheço bem: os tribunais. Contam-se pelo dedos de uma só mão os julgamentos onde participei que começaram à hora marcada. As causas são as mais variadas: sobreposição de diligências, agendamento "por lotes" (isto é, marcam-se sessões para x processos, num determinado período, manhã ou tarde; depois, funciona tipo lotaria), atrasos ostensivos dos magistrados, falta de salas disponíveis, etc. Já aconteceu começar um julgamento, onde intervim, com três horas de atraso. No total, havia ali cerca de 12 pessoas à espera. No entanto, não só não se ouviu um simples pedido de desculpas por parte do juiz, como ainda parecia que estava a fazer um favor em estar ali. No entanto, note-se, as custas processuais continuam a subir escandalosamente. Mas há um caso particular que gostaria de relatar. Deparei-me por por diversas vezes com um juiz que compunha um personagem digno de um livro do Camilo Castelo Branco. Barafustava com toda a gente, sem excepção: com os magistrados do MP, porque deviam ter apresentado o requerimento x e não o fizeram; com os advogados, porque orientavam as respostas das testemunhas, ou porque falavam de mais, ou porque se tinham esquecido de alegar "em tempo", ou até porque, simplesmente, existiam; com as testemunhas porque não sabiam que o dia 1 de Dezembro era o dia da Restauração, ou porque tinham as mãos nos bolsos, ou porque falavam baixo; com os arguidos, porque sim; com o público, se alguém tossia com mais força. Ao princípio, achei piada. Num meio árido, viscoso, onde prospera a arrogância bem educada, o ressentimento embrulhado em salamaleques, é sempre bem-vinda uma nota de humanidade. Mesmo que o mensageiro se julgue, pelas funções que exerce, o representante de Deus na Terra. A certa altura, comecei a achar menos piada ao personagem, pois à benigna excentricidade somou-se uma nota de grosseria, que em nada ajudava o "toque de boca" final. Um belo dia, porém, numa conferência de partes, protestei vivamente porque não tinha sido notificado de determinado requerimento. Foi então que o inesperado aconteceu: o "monstro" pediu desculpa, com uma humildade que me deixou boquiaberto. Sem no entanto abandonar o registo beligerante. Noutra ocasião, chamou-me à parte, propondo que sugerisse a aplicação um determinado mecanismo processual penal, pouco utilizado, mas extremamente útil em casos de pequena litigância, como tive oportunidade de comprovar. Ao qual, obviamente, não levantaria qualquer reserva. Resumindo, estava-me a dar o tom para eu "brilhar". Resolvi arriscar: lembrei-lhe que tinha acabado de escrever um guião para um espectáculo de rua, na parte em que intervinha um juiz. Agradeci-lhe, então, poder ser ele agora a "escrever" a minha parte, naquele ponto. Pela reacção que se seguiu, foi óbvio que o sentido de humor triunfou em toda a linha. Por outro lado, notei uma qualidade jurídica e linguística nas sentenças da sua lavra muito acima da média. Percebi então, em definitivo, o que fazia mover realmente aquele juiz: a irritação incontida contra as rotinas paródicas dos tribunais, um dos poucos lugares onde os mais caricatos estereótipos ainda são a realidade.
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