Acabei de ler "As Benevolentes", de Jonathan Littell (D. Quixote, 1ª edição, 2007). De resto, um livro por cá bastante badalado e que se tornou, em todo o lado, um fenómeno editorial. Entre nós, a primeira edição esgotou em duas semanas, como aqui é explicado. Como começar? Ao longo da uma vida, chega um momento em que se percebe que são poucas as obras literárias que nos conseguem abanar de alto a baixo, jogar connosco um lance de alto risco, embora fascinante. Quando se inicia a leitura, não se imagina sequer que, 900 páginas depois, as perguntas se avolumam à mesma cadência com que os últimos recantos da inocência se esboroam como castelos de cartas. Única condição para que uma espécie de consagração da pureza nascida da amoralidade triunfe, para além do bem e do mal. É nessa viagem que Maximiliem Aue, ex SS-Obersturmbannführer ao serviço da Sicherheitdienst, nos convida a entrar. "Nunca pedi para me transformar num assassino", começa por dizer, explicando que "o Estado é composto de homens, todos mais ou menos comuns, cada um com a sua vida, a sua história, a série de acasos que fizeram com que um dia um deles estivesse do lado bom da espingarda ou da folha de papel enquanto outros estavam do lado mau. Esse percurso só muito raramente é objecto de uma escolha, ou igualmente de uma predisposição". Está lançado o programa. O ex servidor do III Reich leva o leitor pela mão, para que testemunhe o horror sem remissão, a iniquidade sem esperança. Um cenário onde ele foi actor, da mesma forma, remota mas possível, que o leitor igualmente poderia ter sido. E de onde lhe lança para os olhos a sua vida miserável, sem subterfúgios. De fora, ficam os remorsos, os apelos à redenção e à misericórdia, tudo o que possa assemelhar-se ao mais ténue acto de contrição. Aue procede tal como o poeta Vergílio, numa nova Divina Comédia amputada do Paraíso. Todavia, enquanto o poeta se assemelha a um cicerone, Aue é o porteiro da sua memória sem nome. Enquanto Dante conseguiu construir uma alegoria moral para a sua época, para Littell era impossível fazer o mesmo com o nazismo. Não só por causa da evidência da banalidade do mal, na expressão de Hannah Arendt. Mas porque, neste caso, a violência organizada, a industria da morte e a psicopatia como marca do poder, reuniram meios de destruição nunca antes conseguidos. Precisamente em nome de um programa de expansão nacionalista, caucionado pelas mais sólidas referências ideológicas e estéticas. Que quis inaugurar uma ordem que transcendesse uma arrumação moral que renega, com os resultados que se conhecem. Curiosamente, os anti-semitas "normais" eram mal vistos no Reich, uma vez que o ódio irracional inquinaria a eliminação "limpa" de uma espécie sub-humana. Max Aue poderia ter sido um simples jovem idealista, contaminado pela ideologia nacional-socialista e pelo grupo Action Française - Robert Brasillach e Lucien Rebatet foram seus amigos enquanto estudante em Paris. E prosseguir uma carreira académica promissora, na área jurídica. Só que, envolvido pela polícia (Kripo) num episódio "de costumes", numa zona de Berlim pouco recomendável à noite, aceitou uma proposta para integrar a SD na frente Leste. Onde acompanha o avanço da frente na Ucrânia, Crimeia, Cáucaso, acabando em Estalinegrado, onde presenciou os horrores da derrota e da retirada alemã. E onde uma bala de um sniper russo o deixou às portas da morte, de que escapou milagrosamente e lhe abriu o caminho para uma condecoração e uma carreira em alto estilo. Aue parece querer dizer-nos que a tragédia do triunfo e queda do Reich nada tem a ver com a sua tragédia pessoal. Cruzaram-se num beco da história. Onde a culpa e o remorso são assuntos risíveis, tudo é humano, demasiado humano, no início e a partir do fim de uma certa escala. A Oresteia que Aue testemunhou é pois, com toda a propriedade, um tema nietzscheano. A sua é a de um destino para o qual a história o empurrou, de tal forma aterrador que nem as Euménides se dispuseram a suavizá-lo. Estão lá todos os elementos desse pathos: o amor impossível pela sua irmã gémea, Una - a Beatriz proibida - que o precipita na homossexualidade, certamente por vingança e para se sentir perto dela; o assassínio nunca assumido da mãe e do padrasto, no sua casa do sul de França, o que dá origem a uma perseguição tipicamente kafkiana, movida por dois polícias boçais e ridículos, representantes do senso comum, embora sem consequências práticas; o assassínio do seu único amigo, Thomas, no final, após este lhe ter salvo a vida, o que lhe abriu as portas da fuga para França, com uma identidade falsa. (continuação)