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sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Sucupira


Como escreveu Yeats "Nos sonhos começa a responsabilidade". Ou seja, a nossa responsabilidade começa na responsabilidade de imaginar. Todavia, por mais que nos esforcemos, a voragem e a imprevisibilidade do real engole esses tímidos lampejos com a maior das facilidades. Ontem fui visitar um cliente, actualmente a cumprir pena num estabelecimento prisional algures neste país. Depois de tratados os assuntos relativos á sua defesa, confidenciou-me o seguinte: nesse estabelecimento, todos os pedidos de transferência dos presos são sistematicamente recusados. Será devido à perigosidade que envolve a deslocação? Razões de oportunidade, ou falta dela? Sobrelotação nos EPs solicitados? Nada disso. No estabelecimento em causa, existem 58 reclusos e imagine-se - 40 funcionários. Ora, de acordo com as novas regras do Código de Processo Penal, resultou uma diminuição substancial da aplicação de prisão preventiva. Basta agora juntar dois e dois. São os funcionários que estão em pânico por falta de "clientes". Ao fim ao cabo, a razão de ser do seu emprego. São os cidadãos efectivamente condenados a pena de prisão que pagam a factura da irracionalidade na gestão de pessoal afecto à D.G.S.P. Pois a previsível diminuição da população prisional operada pelo novo CPP não foi acompanhada pela redução dos efectivos. Mantendo-se uma ratio aberrante como a mencionada na maioria dos EPs. É assim que funciona, em muitos casos, a Administração Pública. Primeiro criam-se os serviços. Depois vão-se engordando, muitas vezes para satisfazer clientelas eleitorais. Um dia, cessa a sua razão de existir, ou desaparece o fundamento para a sua dimensão. De modo a que acabam por sobreviver alimentando-se a si próprios. Tornam-se uma redundância, uma abencerragem paga pelo erário público. Isto é, são capazes de engordar até à obesidade mórbida, mas quanto a emagrecer, tá quieto ó preto. Para aqueles que não se lembram, ou não viram, a notável telenovela "O Bem-Amado", que passou em 1982, contarei em resumo a história. Sucupira era uma pacata cidade ficcionada do nordeste brasileiro. Tinha um Prefeito, Odorico, (numa interpretação memorável de Paulo Gracindo, na foto) um político cheio de "qualidades": corrupto, ditador, demagogo, chantagista, adúltero e sei lá mais o quê. O seu objectivo número um era inaugurar o novo cemitério, a jóia da coroa do seu magistério. Até contratou um pistoleiro. Mas debalde, pois a côncava funda teimava em não chamar ninguém para junto de si. Até que acabou por ser o autor a estrear a obra. Pois bem, mutatis mutandis...

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