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sexta-feira, 11 de maio de 2007

O neo fascismo - 2

(continuação)
Diz-se que esta nova lei anti-tabágica tem dois objectivos primordiais: persuadir os fumadores a deixarem de o fazer e proteger os não fumadores, impedindo-os de ser fumadores passivos. Os fins são estimáveis, é claro. E confesso que estou rendido ao argumentário dos higienistas e dos fautores do politicamente correcto. Nesta perspectiva, eis alguns dos cenários que se avizinham:
1. Vou passar a não frequentar restaurantes, bares e discotecas. Vendo bem, até se poupam umas coroas. Mas não será por isso que deixarei de conviver, pois parece ser esse um dos objectivos ocultos desta Lei: remeter as pessoas para o isolamento, para a normalização sanitária, pois assim são mais facilmente controláveis. Estão a ver a analogia com "O Admirável Mundo Novo"?
2 Mesmo que vá, por necessidade imperiosa, jantar com uns amigos, o cenário poderia ser este: durante um bom bocado, o convívio processa-se normalmente. Na altura das sobremesas, nota-se uma estranha inquietação, uma ausência bloqueadora que ninguém ousa nomear. Sob pena de o dono telefonar à polícia e sermos daí a nada escoltados por meia dúzia de cabos-de-esquadra, só por alguém ter soletrado a palavra proibida. Vem o café e aí a angústia torna-se insuportável. Até que o mais afoito, tentando reproduzir a aproximação de um comando aliado a uma praia normanda no dia D, chega-se à porta. Cá fora, a uns bons 10 metros, não vá aparecer o Tiago Mendes com um apito, puxa do "coiso" e acende-o. Já agora, aqui na Guarda e no Inverno, esta saída "higiénica" poderia significar uma semana de gripe. Mas adiante. Encorajados por este lance de coragem, os outros imitam-lhe os passos. Nesta altura, o dono já está a começar a desconfiar de uma golpada. Por essa razão, as saídas são rotativas. Nas mesas ao lado, o processo é idêntico. A certa altura, grande parte dos clientes e até dois empregados já estavam "cá fora". Pela nossa parte, o ambiente estava irremediavelmente inquinado. Nem um digestivo se pode saborear. Nem a tal conversa animada chegou sequer aos preliminares. Nem a tal anedota se chegou a contar. Nem aquele olhar meio enevoado que eu ia lançar à X, como uma radiosa promessa para a noite. Nada. No final, cada um para sua casa. Carregando uma espécie de culpa sem culpado. Autênticos personagens saídos de uma novela de Kafka.
3. Se puxar de um cigarro numa praia, cairão em cima de mim trinta polícias marítimos, assessorados por dez membros do Exército de Salvação e um taxista em férias que ia a passar por ali a coçar os tomates, murmurando que "é prexijo pôr esta malandraje na ordem! olhem qu'esta!".
4. Se resolver mesmo acender uma cigarrilha de topo num café, durante a tarde, vejamos os desenvolvimentos mais óbvios: vem o empregado com uma máscara de cirurgião e envia-me provisoriamente de quarentena para uma sala contígua, destinada ao efeito. Entretanto, o dono já telefonou às "autoridades" e, passados quinze minutos, estacionam à porta do café: uma carrinha com um pelotão de polícias anti-motim equipados a rigor; um carro de baixa cilindrada conduzido pelo pároco local, munido de um manual prático para exorcismos; a carrinha da ala psiquiátrica do Hospital, com dois enfermeiros empunhando um colete de forças; dois elementos do SIS; um clone do Dr. Gentil Martins; uma carrinha dos Bombeiros para o que desse e viesse; o fantasma do Harry Truman - o Presidente americano que deu a ordem para o lançamento das duas bombas atómicas e cuja frase preferida era mens sana in corpore sano; por fim, talvez mesmo o Homem Aranha. Entretanto, nas mesas em redor, um cocainómano a inalar uma fila, um admirador de Mao Tsé Tung e um executivo debruçado num laptop - lançando ordens de compra e venda de acções, que viriam a colocar no desemprego centenas de pessoas num país obscuro da Ásia - estavam visivelmente solidários com as forças da ordem e incomodados com a impertinência do pestífero smoking- serial- killer encarcerado na sala ao lado.

A prósito desta cruzada anti-tabagista, que prenuncia outras que aí vêm, é fundamental ler duas obras:
1. "O Admirável Mundo Novo", de Huxley. O fundamentalismo sanitário, a instauração da "Soma" (a droga única) e o paternalismo assistencial, inimigo da lucidez e da propriedade plena sobre o corpo, já lá estão. É só comparar com a situação criada com esta lei. Descubram as diferenças.
2. Para outros vôos, sobretudo para os amantes da liberdade e do conhecimento obtido através de diferentes estados de consciência, recomendo "Drogas, Embriaguez e Outros Temas", de Ernst Jünger.

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