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sábado, 19 de maio de 2007

A mancha

Marcas de leitura. Gosto dessas marcas. Porque a leitura é uma refrega. Por vezes uma batalha. De que vale ler, se não houver nódoas negras? De que vale ler, se não se lancetam as nódoas? Um texto incólume diante de um leitor inalterado: haverá relação mais triste?

2 comentários:

  1. Não te deixes enredar nessas tentações sado-masoquistas, amigo. Cuidado, Godinho! Sempre ouvi dizer que os livros são perigosos. Ora vejamos:

    «Na Primavera de 1998, Bluma Lennon comprou numa livraria do Soho um velho exemplar dos Poemas, de Emily Dickinson, e, ao chegar ao segundo poema, na primeira esquina, foi atropelada por um automóvel.

    Os livros mudam o destino das pessoas. Uns leram O Tigre da Malásia e converteram-se em professores de literatura em remotas universidades. Siddhartha levou ao hinduísmo dezenas de milhares de jovens, Hemingway converteu-os em desportistas, Dumas transtornou a vida de milhares de mulheres e não poucas foram salvas do suicídio por manuais de cozinha. Bluma foi vítima deles.

    Mas não a única. O velho professor de línguas antigas Leonard Word ficou hemiplégico ao levar na cabeça com cinco volumes da Enciclopédia Britânica, que se desprenderam de uma estante da sua biblioteca; o meu amigo Richard partiu uma perna ao tentar chegar ao Absalão, Absalão!, de William Faulkner, mal colocado numa estante, o que o levou a cair da escada. Outro amigo de Buenos Aires adoeceu de tuberculose nos sótãos de um arquivo público e conheci um cão chileno que morreu de indigestão com Os Irmãos Karamazov, depois de devorar as suas páginas numa tarde de fúria.

    Sempre que a minha avó me via a ler na cama, costumava dizer-me: “Larga isso, que os livros são perigosos.” Durante muitos anos acreditei na sua ignorância, mas o tempo demonstrou a sensatez da minha avó alemã.

    O funeral de Bluma atraiu numerosas autoridades da universidade de Cambridge. No ofício religioso, o professor Robert Laurel dedicou-lhe uma soberba despedida, logo editada em opúsculo pelo seu mérito académico. Ressaltou a sua brilhante carreira universitária, os seus quarenta e cinco anos de sensibilidade e inteligência e, no corpo principal do trabalho, as suas decisivas contribuições para a investigação do rasto anglo-saxónico nas letras latino-americanas. Mas culminou com uma frase controversa: “Bluma consagrou a sua vida à literatura sem imaginar que ela a levaria deste mundo.” (…)»

    A casa de papel / Carlos María Domínguez. - Porto : Edições ASA, 2006.

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  2. Ana:

    Ainda bem que são perigosos. Todavia menos do que viver.

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