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segunda-feira, 15 de janeiro de 2007

Raskol

Dia 22 de Dezembro de 1849. Na praça Semenov, em S. Petersburgo, os pés dos transeuntes enterravam-se na neve. Vários regimentos guardavam a praça, entre os quais a Guarda Imperial do Regimento de Infantaria de Moscovo, pois um dos homens condenados à morte nesse dia aí fora oficial. O pano negro que recobria o cadafalso salpicava-se dos flocos brancos. Sobre ele esperavam 21 homens, 16 dos quais entregues ao carrasco. Entre estes contava-se Dostoievski.
Voltemos atrás. O grande escritor havia nascido em 1821, numa altura em que o ímpeto reformista do czar Alexandre II, revelado quarenta anos depois, aproximando a Santa Rússia da Europa, era uma simples quimera que se pagava com a vida. Falamos de um mundo em que a prosperidade se media pelo número de “almas”, servos em regime de escravidão, ao dispor de uma aristocracia burocratizada e domesticada por um czar paternalista e sobre-humano. À boa maneira asiática, a sociedade russa daquele tempo estava rigorosamente estratificada: nobreza, clero, negociantes, cidadãos, camponeses e mais alguns grupos intermédios. A classe culta compunha-se de nobres, oficiais e funcionários públicos. Desde o tempo de Pedro o Grande cada nobre era compelido a “servir”. Tal “serviço”, porém, era de duração curta: permitia-se que se resignasse o cargo a favor de indivíduo de classe mais baixa e se levasse o resto da vida liberto de ambições públicas. Os oficiais dividiam-se em 14 patentes e cada nobre poder-se-ia inscrever em 6 registos!
Em Janeiro de 1838, Dostoievski ingressou na escola militar de engenharia de Petersburgo. Aí encontrou algumas das afinidades e círculos de influência que haveriam de o perseguir para o resto da sua vida. A publicação de Pobre Gente tinha-lhe garantido a entrada nos meios literários da capital. Entre eles, encontrava-se o círculo conspiratório animado por Petrashevski. Que houvera criado um grupo de seguidores, inspirados por Fourier, dispostos a introduzir reformas liberais na Rússia. O movimento chamava-se A Primavera dos Povos. Numa dessas reuniões, leu uma carta de Belinski a Gogol, refutando as suas afirmações monárquicas e religiosas. Tal leitura e a participação no ambiente conspiratório do grupo custaram-lhe a condenação à morte.
Encontramos o escritor novamente em frente do pelotão de fuzilamento. Sabe-se que, no último momento, chegou um emissário pessoal do czar. Com instruções para a sua e as outras penas serem comutadas entre o degredo perpétuo para a Sibéria, até uns "simples" quatro anos num centro de detenção naquelas gélidas paragens. Foi este o no seu caso.
Desse tempo em Omsk, nasceu uma das obras-primas da literatura, justamente intitulada Recordações da Casa dos Mortos: o pan-eslavismo cristão e uma cruel análise psicológica, lado a lado numa fascinante “reportagem” jornalística, mas sobretudo literária.
Ao longo da sua obra, para acentuar as diferenças entre as suas personagens, o escritor optou sempre por uma completa semelhança. Como se pretendesse demonstrar que a maior diferença existe, não entre duas cores diferentes, mas entre duas tonalidades muito aproximadas da mesma cor. Por exemplo, no julgamento do parricida, em
Os Irmãos Karamazov o promotor não acredita que o réu – Dmitri – seja culpado, ao passo que o advogado do acusado se convence profundamente do contrário. O leitor não duvida que a defesa triunfará, mas o Tribunal reconhece o réu culpado. Nesta caricatura das relações perversas entre as instituições públicas e a verdadeira natureza humana, Dostoievski, inconscientemente, confessa-se um anarquista, resguardando, sob as vestes de Deus e do Czar, a sua própria anarquia.

Publicado no jornal "O Interior"

PS: Sobre o romancista, ver também o que aqui e aqui neste blogue já se escreveu.

4 comentários:

  1. Gil,
    Que é que aconteceu `a tua resposta, no Post " O Embuste"? Estava bem e podia ser base para continuar a discutir.
    A propósito deste, olha que era Fourier e não Fourrier. E o velho Fiodor não era propriamente um anarquista. Como sabes, ele veio da Sibéria com ideias teocráticas, muito semelhantes às que se usam ( adaptadas ao lugar e ao tempo) no Irão, só que de forma filo-eslava e ortodoxa. Não foi propriamente um anarquista religioso e pacifista como Tolstoi.

    André

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  2. André:

    Como bem reparaste, retirei o comentário. Por várias razões: era um bocado petulante,puramente reactivo, não respondia a várias questões importantes que lançaste no teu, e, de certa forma, as ideias-chave eram as mesmas do post.
    Em relação ao Dostoievski, concordo contigo quando dizes "anarquismo" não é o termo mais adequado ao seu pensamento. Em seu lugar, colocava o nihilismo. Que ele descreve de forma admirável, mas implacável em "Os Demónios" (ou "Os Possessos", dependendo da tradução),antecipando o que viria a acontecer quarenta anos depois na Rússia.Mas de que não não deixa de ser tributário. E por isso tão citado pelos existencialistas. A faceta filo-eslava, que referes,alimentada por uma espiritualidade ortodoxa, vai-se notando progressivamente ao longo da obra. Sobretudo Nos "Cadernos de um Escritor", já para não falar nos seus romances mais emblemáticos.O ponto de viragem foi o degredo na Sibéria, como bem notas.Mas é sobretudo em "Os Irmãos Karamazov que as suas obsessões emblemáticas mais se notam. Não te esqueças que a obra, dividida em dois volumes, está incompleta, pois o autor tinha previsto mais uma parte. Que não concluiu porque a morte veio invalidar o seu projecto. Cada uma seria dedicada a um dos irmãos. A última seria a de Aliocha, o mais novo. Um autêntico príncipe de coração puro, decalcado dos protagonistas de "O Idiota" e "O Adolescente". Aqui, não por acaso, ligado à vida monástica. Creio que o seu cepticismo, agravado com o tempo, necessitava de um contraponto forte que aligeirasse, que criasse um ponto de fuga e de redenção.

    No teu comentário anterior referiste ao de leve um episódio que diz respeito a alguém que ambos conhecemos. Não creio ser este o lugar indicado para te informar o que levou ao mesmo e o que veio depois. Para isso, agradecia que me enviasses o teu endereço de correio electrónico para o email assinalado acima.

    Abraço

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  3. Gil,

    Obrigado pela tua humildade em relação à retirada do pOST, o que só demonstra a intensidade do que pensas e que bem deveria servir de exemplo a muitos. Bom ponto esse do Fiodor mas ainda assim, ao que me lembra, eu fui nihilista e onde íamos buscar era ao Nechaev e quejandos, não me lembra de ver citado o Fiódor ( até tem tem um texto engraçado nos Cadernos, sobre a conversão de um nihilista -- na realidade, quando se passa ao nada anarquistra é porque se tem muita coisa como uma mancha negra está cheia de côr e como só italianos e romenos, cheios de passado, podiam ser fascistas, já que os outros tinham que ser nazis, quer isto dizer que o nazismo ainda é socialismo, o fascismo italiano é, em certos aspectos,uma forma de anarquismo). O nihilismo, uma ideologia desesperada mas, em russo, cheia de verdades.
    Mando-te o teu e-mail pelo teu.

    André

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  4. É bom não esquecermos igualmente a sua mestria nos diálogos, a descrença na razão, o profundo conhecimento com que desenhava interiormente os personagens.O maior.

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