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terça-feira, 24 de outubro de 2006

Minha cabeça estremece com todo o esquecimento

Minha cabeça estremece com todo o esquecimento.
Eu procuro dizer como tudo é outra coisa.
Falo, penso.
Sonho sobre os tremendos ossos dos pés.
É sempre outra coisa,
uma só coisa coberta de nomes.
E a morte passa de boca em boca com a leve saliva,
com o terror que há sempre
no fundo informulado de uma vida.

Sei que os campos imaginam as suas próprias rosas.
As pessoas imaginam os seus próprios campos de rosas.
E às vezes estou na frente dos campos
como se morresse;
outras, como se agora somente eu pudesse acordar.

Por vezes tudo se ilumina.
Por vezes sangra e canta.
Eu digo que ninguém se perdoa no tempo.
Que a loucura tem espinhos como uma garganta.
Eu digo: roda ao longe o outono,
e o que é o outono?
As pálpebras batem contra o grande dia masculino do pensamento.

Deito coisas vivas e mortas no espírito da obra.
Minha vida extasia-se como uma câmara de tochas.

- Era uma casa - como direi? - absoluta.

Eu jogo, eu juro.
Era uma casinfância.
Sei como era uma casa louca.
Eu metia as mãos na água: adormecia,
relembrava.
Os espelhos rachavam-se contra a nossa mocidade.

Apalpo agora o girar das brutais,
líricas rodas da vida.
Há no esquecimento, ou na lembrança total das coisas,
uma rosa como uma alta cabeça,
um peixe como um movimento rápido e severo.
Uma rosapeixe dentro da minha ideia desvairada.
Há copos, garfos inebriados dentro de mim.
- Porque o amor das coisas no seu tempo futuro
é terrivelmente profundo, é suave,
devastador.

As cadeiras ardiam nos lugares.
Minhas irmãs habitavam ao cimo do movimento
como seres pasmados.
Às vezes riam alto. Teciam-se
em seu escuro terrífico.
A menstruação sonhava podre dentro delas,
à boca da noite.
Cantava muito baixo.
Parecia fluir.
Rodear as mesas, as penumbras fulminadas.
Chovia nas noites terrestres.
Eu quero gritar paralém da loucura terrestre.
--- Era húmido, destilado, inspirado.

Havia rigor. Oh, exemplo extremo.
Havia uma essência de oficina.
Uma matéria sensacional no segredo das fruteiras,
com as suas maçãs centrípetas
e as uvas pendidas sobre a maturidade.
Havia a magnólia quente de um gato.
Gato que entrava pelas mãos, ou magnólia
que saía da mão para o rosto da mãe sombriamente pura.
Ah, mãe louca à volta, sentadamente completa.
As mãos tocavam por cima do ardor
a carne como um pedaço extasiado.

Era uma casabsoluta - como direi? -
um sentimento onde algumas pessoas morreriam.
Demência para sorrir elevadamente.
Ter amoras, folhas verdes, espinhos
com pequena treva por todos os cantos.
Nome no espírito como uma rosapeixe.

- Prefiro enlouquecer nos corredores arqueados
agora nas palavras.
Prefiro cantar nas varandas interiores.
Porque havia escadas e mulheres que paravam
minadas de inteligência.
O corpo sem rosáceas, a linguagem para amar e ruminar.
O leite cantante.

Eu agora mergulho e ascendo como um copo.
Trago para cima essa imagem de água interna.
- Caneta do poema dissolvida no sentido primacial do poema.
Ou o poema subindo pela caneta,
atravessando seu próprio impulso,
poema regressando.
Tudo se levanta como um cravo,
uma faca levantada.
Tudo morre o seu nome noutro nome.

Poema não saindo do poder da loucura.
Poema como base inconcreta de criação.
Ah, pensar com delicadeza,
imaginar com ferocidade.
Porque eu sou uma vida com furibunda melancolia,
com furibunda concepção.
Com alguma ironia furibunda.

Sou uma devastação inteligente.
Com malmequeres fabulosos.
Ouro por cima.
A madrugada ou a noite triste tocadas
em trompete.
Sou alguma coisa audível, sensível.
Um movimento.
Cadeira congeminando-se na bacia,
feita o sentar-se.
Ou flores bebendo a jarra.
O silêncio estrutural das flores.
E a mesa por baixo.
A sonhar.


Herberto Helder, Poemacto II

5 comentários:

  1. Belo poema este de Herberto Hélder que, salvo erro, foi Informador da PIDE e, por isso, fez bem em eclipsar-se. Gôsto de aventura, amor a Portugal, uma certa imaturidade, próprias da juventude. Agora, este poema está cheio de sexo, a começar pelo andar de cima e pelo pasmo das irmãs mais a menstruação. Se não fosse sexo disfarçado, o Poema era apenas infantil. Mas é esse o mal: há estudos que dizem que um Homem normal tem não sei quantas horas de pensamentos sexuais, por cada período em que está acordado. Alguém achou, no Passado que isso era mau e devia ser dominado. Outros fartaram-se disso e estouraram o foguete da Liberdade. Mas é no infantil que está o problema do poema: regresso ao Passado, à protecção da vida infantil. Os freudianos passaram a vida a meter o dedo na bôca...só pergunto, desesperado, haverá ou não o direito a ter uma Vida depois da infância?! Pelos vistos não, porque a vida-depois está para ser referendada. Só se pode ter a Vida antes.

    André

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  2. André:
    Depois de ler o teu comentário, sinceramente não descortinei onde queres chegar. Em relação ao Herberto Helder - o maior poeta português vivo - como em relação a qualquer autor, a minha posição é sempre a mesma: só me interessa a sua identidade literária. O resto é absolutamente irrelevante. Rimbaud dedicou-se ao tráfico de armas, após ter renegado a sua obra. Será que isso prejudicou a poesia que nos deixou? H.H era informador da PIDE? Não sei, nem nunca ouvi falar em tal.De qualquer modo, é-me totalmente indiferente.
    Por outro lado,será mesmo que "o poema está cheio de sexo"? Deixo a resposta para os semiólogos, ou para os psicanalistas. Ora, sendo a poesia - como creio - um local de liberdade de criação absoluta, qualquer tentativa de a reduzir a um suposto referente é um péssimo serviço que se lhe presta. O que importa é para onde ela nos leva, não de onde vem.
    Por outro lado, há demasiado idealismo e demasiada condescendência à volta da infância. Que não é, nem de perto nem de longe, um mar de rosas.
    Quanto à questão do aborto, que referes ao de leve, pouco haverá a dizer. Tu deves ser contra, por razões religiosas Eu encaro-o como uma questão de saúde pública.
    De qualquer forma, denoto nas tuas palavras uma intolerância que tanto pode ser nada cristã como absolutamente cristã, dependendo do ponto de vista.

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  3. Gil,

    Quem abre o Blog ao Público, sujeita-se a receber comentários. Semiólogos e psicanalistas servem também para saberes onde quero chegar. Entretanto, lá vamos usando o nosso privilégio do comentário, mesmo sem certificado de 'politicamente correto". Um comentário é sempre lateral, depende do assunto comentado e, claro, é limitado. Ainda para mais em Poesia. Mas já que estamos no mundo das opiniões, eu digo "Viva ao Ramos Rosa!" que é o melhor Poeta português (ainda) vivo. Gôstos não se discutem. Eh, parece que o Herberto Hélder foi Informador ou mesmo Agente da Pide e também outras coisas piores -- disso-o o Carlos Paulo de "A Comuna" no espectáculo que esta fez sobre o H.H. Sabes que eu venho duma escola em que se lembra sempre que um dos que acusou Sócrates ( não esse) e lhe pediu a pena de morte era Poeta.Foi uma perda incalculável que nem os amigos conseguiram evitar.

    Hoje estava a almoçar com um Homem Bom da tua terra e com um ex-KGB russo e veio à baila a "Tolerância". O ex-KGB queria fazer uns sofismas sobre esta palavra que têm boa vibração mas que não pode ser apenas uma palavra.Por isso, falei com esse homem intolerante, de tolerância. Em nome da Tolerância, deve-se ver o que é intolerável, para estabelecer um verdadeiro relativismo que é sempre relativo a algo.

    Eu, por exemplo, tolero quem decide abortar, mas aí também há limites e acho que não se deve fazer da Lei algo dependente das maiorias de Legislatura, num mundo onde há mais Leis do que alguma vez houve. A Lei deve ter algo válido a longo-prazo, não deve ser objecto de Referendo, sobretudo quando diz respeito ao Valor Vida. Acho que se houvesse uma situação da catástrofe, ou de ataque iminente ao valor Vida, um Governante pode tomar medidas de excepção, como a Guerra, como o levantamento nacional,como o combate a uma epidemia, etc ( os nossos Rangers aprendem técnicas que, no fundo, não são diferentes das de muitos grupos classificados como terroristas). Não penso que seja esse o caso do Aborto que se pratica mas isso é algo que podemos discutir em números. Está em causa como tu dizes, um valor de Saúde Pública. Um modo de gerir esta é a Criminalização de certas práticas. Ora eu acho que o Crime corresponde antes de tudo a um conjunto de valores que têm de ser avaliados pessoalmente. O crime é lícito em certos estados de necessidade, em legítima defesa, etc. No fundo, o Crime acaba por ser apenas o aspecto externo, público, do que vai ser uma pena. Mas um são julgamento penal nunca é em praça pública. Dirás que é isso que pretendem os apoiantes do "Sim". A questão passaria apenas a ser do fôro pessoal ( nunca seria bem, devido ao estado de desenvolvimento da medicina e à necessária opinião do Médico). Ora, como eu gosto mais do Ramos Rosa e tu do Herberto Hélder, mas a discussão é apenas sobre quem é o melhor e não se ambos são bons ou maus poetas, a questão do Aborto, não deve ser posta em, das duas uma: "ou é um Direito, ou é um Crime". Por isso não sou dos "pró-Vida", e, contudo, ainda acho o Aborto um crime que não deve ser despenalizado. Mas o Estado que referenda deve demonstrar, antes, sucesso em combater os caminhos que levam à prática deste Crime. Despenalizar não é um deles, porque legal ou não, continuarão a existir muitos abortos clandestinos, por razões morais e de costume que a Lei não consegue mudar. E não sou, SOBRETUDO, dos pró-Vida porque não acho que seja uma corrente de opinião quem define o que é crime ou o que deve ser penalizado.

    Por isso não sou contra, nem a favor. Não reconheço o direito ao Estado de sujeitar a minha decisão pessoal a um Referendo público. Podes pensar que é uma demagogia esta subtileza antiga da acção política mas...estas votações devem ser dirigidas à consciência individual de cada um e não apelar, em nome de uma solidariedade que o Estado nunca provou, pôr a Consciência na Praça pública, como o faz a pergunta formulada. Ninguém pode votar pelo meu Aborto, nem eu pelo dele. Existe algo anterior a qualquer Lei, a qualquer maioria, a qualquer Referendo que deve ser respeitado pela Lei. Ninguém gere o meu casamento nem as minhas relações afectivas, a minha relação com "Deus" ou o meu estado de espírito. Admito que se possa reger a Vida e que se considere a Vida, como os Bispos o fizeram, desde o momento da concepção,mas a Lei ainda não conseguiu -- apesar de todas as demagogias públicas -- promulgar a imortalidade ( apesar de algumas disposições Soviéticas, Nazi-ocultistas e, recentemente, norte-americanas).Por isso o suicídio é ainda inalcançável, como o é o assassínio, em Guerra,ou por ideias ou por acaso.

    Se vires o argumento dos Bispos ( e não os invoco, enquanto magister dixit) eles reconhecem que o facto de serem contra vai muito para além das suas razões religiosas e cristãs.
    O conceito de Vida é por vezes um preconceito, admito. Os cirurgiões, os pilotos e os sargentos sabem-no bem. Por isso, acertas quando dizes que "a minha intolerância" pode ser ou não cristã.

    O meu mistério privado é provavelmente celta ou árabe,ou judeu, ou viking ou romano. No meio de tanta Publicidade, admito que não sei mas sei que é anterior aos Referendos e às maiorias. Aí, tens razão. Alcancei o meu limite de tolerância. Como no Poema de José Régio: Sei que não vou por aí!

    André

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  4. Desculpem a intromissão, mas para mim o maior poeta português é o Ministro da Economia, quando decretou o fim da crise...

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  5. O meu contributo a este seu post, embora tardio:

    http://dapoetica.blogspot.com/2008/10/minha-cabea-estremece_16.html

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