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sexta-feira, 29 de setembro de 2006

"A Estratégia da Aranha"

Sobretudo nos sistemas políticos democráticos, geram-se perversões ao normal e transparente funcionamento das instituições que, supostamente, seriam o seu pilar. Em Portugal há um fenómeno que, não sendo particular, adquire proporções catastróficas: a existência daquilo a que os sociólogos chamam de "elites dos fluxos". Trata-se de uma espécie de casta que, por razões profissionais, de classe, ou de poder reivindicativo, actuam como se estivessem fora das responsabilidades que lhe são exigidas num Estado de Direito. Mas não abdicam da proximidade do poder - poder legítimo e soberano, entenda-se - para, na qualidade de insiders, influenciarem a opinião pública e as instituições, bloquearem o Executivo, criando uma teia de dependências, propícia ao compadrio e ao mais rasteiro corporativismo. As estruturas representativas das magistraturas - não a classe no seu todo, é claro - são o exemplo mais nítido deste modus operandi. Sendo cabeças de cartaz personagens como Noronha do Nascimento, recém-nomeado Presidente do STJ.
Razão pela qual se transcreve o editorial saído hoje no "Público", de José Manuel Fernandes, com o mesmo título deste post. E que poderá ser aqui lido por assinantes da edição on line .

Noronha de Nascimento, o homem que vai presidir ao Supremo, representa a face sombria da nossa justiça.

    Querem um símbolo, um expoente, um sinónimo, dos males da justiça portuguesa? É fácil: basta citar o nome da Noronha de Nascimento e tudo o que de mal se pensa sobre corporativismo, conservadorismo, atavismo, manipulação, jogos de sombras e de influências, vem-nos imediatamente à cabeça.

    O juiz - porque é de um juiz de que se trata - é um homem tão inteligente como maquiavélico. Anos a fio, primeiro na Associação Sindical dos Juízes, depois no Conselho Superior da Magistratura, por fim no Supremo Tribunal de Justiça, esta figura de que a maioria dos portugueses nunca ouviu falar foi tecendo uma teia de ligações, de promiscuidades, de favores e de empenhos (há um nome mais feio, mas evito-o) que lhe assegurou que ontem conseguisse espetar na sua melena algo desgrenhada a pena de pavão que lhe faltava: ser presidente do Supremo Tribunal de Justiça. O lugar pouco vale (quem, entre os leitores, sabe dizer quem é o actual presidente daquele tribunal, formalmente a terceira figura do Estado?). Dá umas prebendas, porventura algumas mordomias, acrescenta uns galões, mas pouco poder efectivo tem.

    O problema, contudo, reside neste ponto: tem, ou terá? Os senhores juízes, que aqui há uns tempos se empenharam na disputa com o Tribunal Constitucional para saber quem era hierarquicamente mais importante (ganharam os do Supremo a cadeira do protocolo, deram aos do Constitucional a consolação de terem ao seu dispor um automóvel topo de gama...), nem sequer são muito respeitados. Por sua culpa, pois sabe-se que alguns passam pela cadeira do Supremo apenas uns meses e para engordar a sua reforma. O presidente daquele agigantado colégio de reverendíssimos juízes pouco poder tem tido, só que Noronha de Nascimento apresentou-se aos eleitores - ou seja, aos seus pares, aos que ajudou a subir até ao lugar onde um dia o elegeriam - com uma espécie de programa que arrepia os cabelos do mais pacato cidadão.

    O homem não fez a coisa por pouco: ao mesmo tempo que vestiu a pele do sindicalista (pediu que lhe aumentassem o salário e que dessem menos trabalhos aos juízes...), pôs a sobrecasaca de subversor do regime (ao querer sentar-se no Conselho de Estado) e acrescentou o lustroso (pela quantidade de sebo acumulado) chapéu do "resistente" às reformas no sector da justiça.

    Se era aconselhável que um presidente do Supremo Tribunal desse mais atenção a Montesquieu e ao princípio da separação de poderes do que à cartilha da CGTP, Noronha de Nascimento fez exactamente o contrário. Reivindicou como um metalúrgico capaz de ser fixado para a posteridade numa pintura do "realismo socialista" e, esquecendo-se de que é juiz e representante máximo do "terceiro poder", o judicial, pediu assento à mesa do "primeiro poder", o executivo. É certo que o poder do Conselho de Estado é tão inócuo como o penacho de ser presidente do Supremo Tribunal, só que a reivindicação contém em si duas perversidades. A primeira é ser sinal de que Noronha de Nascimento se preocupa mais com o seu protagonismo público do que com os problema da justiça. A segunda, bem mais grave, é que o homem se disponibiliza para ser o rosto de uma fronda dos juízes contra as decisões reformistas do poder político, neste momento objecto de um consenso alargado entre o partido do Governo e a principal força da oposição.

    É tão patético que daria para rir, não estivéssemos em Portugal e não entendêssemos como funcionam as estratégias das aranhas. O homem, creio sem receio de me enganar, é tão inteligente e habilidoso como é perigoso. Até porque tem já um adversário assumido: o novo procurador-geral da República, Pinto Monteiro, um dos raros que tiveram a coragem de lhe fazer frente."

3 comentários:

  1. Há igualmente movimentações engraçadíssimas na procuradoria geral da república. É só visitar o blogue "câmara corporativa" e leia-se o pos respectivo.

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  2. O personagem é sinistro. Havia de dar um belo tema para as "Farpas"...

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