A terrível orfandade da esquerda herdeira do "socialismo científico" é dramática. Habituada a pensar e agir segundo abstracções - as "massas", a "classe operária", os "oprimidos" - cuja liderança esclarecida e "democrática" conduziria à vitória final, perdeu de vista o indivíduo e as suas verdadeiras necessidades. Alheou-se dos novos movimentos sociais e estéticos, cujo raio de acção caía fora da sua agenda política, preenchida esta quase na totalidade com reivindicações de carácter corporativo. Essa esquerda orgânica, acomodada ao hedonismo e à sociedade do espectáculo triunfante no pós-guerra, recusou-se a ver os sinais que vinham do lado de "cá" - a inviabilidade do "Estado Social", o desmantelamento da indústria pesada e com mão-de-obra intensiva, a terceirização da economia, a emergência de novos paradigmas de conflitualidade - e do lado de "lá": Hungria, Checoslováquia, Polónia, Cambodja, Cuba, China, etc. Indícios inequívocos da falência daquilo em que diletantemente acreditava. Com a queda do muro de Berlim foi o descalabro. O mundo deixou de ter bons e maus. Andou nesta indefinição durante uma década. Em seu socorro vieram alguns balões de oxigénio: a luta anti-globalização, a primeira guerra do Iraque, entre outros.
Mas algo aconteceu que veio alterar as coordenadas geográficas da sua busca incessante de novos paladinos anti-ocidente - a emergência do radicalismo islâmico. Que identificou erroneamente com os "oprimidos" do capitalismo global. Acontece que esse paladinos são precisamente os grandes beneficiários desse capitalismo e que, aliados às oligarquias reinantes, mantem a esmagadora maioria - sobretudo as mulheres - das populações dos respectivos países numa situação de quase indigência, num regime de cleptocracia fundada na autoridade inquestionável do Islão. Essa mesma esquerda ignorou ostensivamente a proliferação de madrassas, o massivo recrutamento de jovens descontentes - alguns tendo estudado no Ocidente - o crescente poderio militar dos fundamentalistas, a sua organização supranacional, a audácia com que iam cometendo atentados terroristas, financiados pelos potentados do golfo. Ao fim ao cabo, na sua perspectiva, eram lições merecidas pelo "Grande Satã" e pelo seu aliado sionista, os únicos responsáveis pelo estado a que as coisas chegaram. Em três coisas, no entanto, acertaram: as tentativas de laicização que nos anos cinquenta e sessenta foram feitas no interior do mundo árabe, de que Nasser e o Hamas da altura são exemplos, foram boicotadas pelos americanos, no contexto da Guerra fria; que também financiaram e armaram os talibãs e o Iraque, quando eram aliados estratégicos no combate, respectivamente, aos soviéticos no Afeganistão e aos iranianos; a invasão do Iraque, embora contabilizada como vitória militar, pode muito bem vir a ser uma derrota política, para além de ter criado mais um foco de instabilidade propício à demagogia dos radicais.
Voltando ao tema, o resto é fácil de seguir: padecendo de uma orfandade crónica, e carecendo de um inimigo de estimação para exercer o seu ressentimento - porque foi incapaz de fazer o luto, na sequela da desagregação do Leste - a esquerda elegeu um alvo preferencial: os Estados Unidos. A que associou recentemente o anti-semitismo. E nesta fixação doentia tem gasto grande parte das suas energias, em vez de se reformular, enérgica e drasticamente. Pelo caminho, e para além dos ultras islâmicos, aplaude os neo-populistas sul-americanos Chavez e Morales, Milosevic, Fidel, a escalada nuclear iraniana, o Hezbollah, etc. Ficando em silêncio no assassinato do cineasta Theo Van Gogh na Holanda - lembram-se? Idem quanto ao derrube das estátuas budistas no Afeganistão, às ordens dos Taliban. Alguém lhes exigiu desculpas? E alguém já as exigiu aos dirigentes religiosos islâmicos que diariamente insultam, ameaçam, caluniam tudo o que seja Ocidental? Que diariamente encontram qualquer pretexto para incendiar a "rua islâmica" e reforçar o seu poder. Neste ponto, o episódio dos cartoons dinamarqueses é exemplar. As maiores vítimas do terrorismo islâmico, é bom lembrar, são, em primeira mão, os próprios muçulmanos. As acções terroristas, cada vez mais desmaterializadas e planeadas localmente, obedecem no entanto a um programa preciso - manipulação dos media, agitação cirúrgica, concentração de meios em zonas conturbadas, mobilidade logística, recrutamento de cidadãos muçulmanos de países ocidentais como "soldados de Deus", "oferta" de serviços às populações em zonas ocupadas, imposição de um padrão islâmico regressivo para todo o mundo muçulmano, mesmo nos países mais "liberais" (veja-se o caso da Tunísia), sendo que, só os alvos são aleatórios. Porque dependem, cada vez mais, de circunstâncias puramente operacionais.
Mas essa esquerda, que com várias nuances continua a colher os frutos daquilo que tanto detesta, esqueceu-se de um pormenor: este terrorismo não escolhe os alvos pela sua maior ou menor simpatia com a sua causa. Portanto, também ela pode ser vítima, também os mesmos que subscrevem, explícita ou tacitamente, a cruzada anti-ocidental, podem ser os próximos a cair. Toda esta história se resumiria simplesmente à ironia, se não fosse profundamente trágica.
Voltando ao tema, o resto é fácil de seguir: padecendo de uma orfandade crónica, e carecendo de um inimigo de estimação para exercer o seu ressentimento - porque foi incapaz de fazer o luto, na sequela da desagregação do Leste - a esquerda elegeu um alvo preferencial: os Estados Unidos. A que associou recentemente o anti-semitismo. E nesta fixação doentia tem gasto grande parte das suas energias, em vez de se reformular, enérgica e drasticamente. Pelo caminho, e para além dos ultras islâmicos, aplaude os neo-populistas sul-americanos Chavez e Morales, Milosevic, Fidel, a escalada nuclear iraniana, o Hezbollah, etc. Ficando em silêncio no assassinato do cineasta Theo Van Gogh na Holanda - lembram-se? Idem quanto ao derrube das estátuas budistas no Afeganistão, às ordens dos Taliban. Alguém lhes exigiu desculpas? E alguém já as exigiu aos dirigentes religiosos islâmicos que diariamente insultam, ameaçam, caluniam tudo o que seja Ocidental? Que diariamente encontram qualquer pretexto para incendiar a "rua islâmica" e reforçar o seu poder. Neste ponto, o episódio dos cartoons dinamarqueses é exemplar. As maiores vítimas do terrorismo islâmico, é bom lembrar, são, em primeira mão, os próprios muçulmanos. As acções terroristas, cada vez mais desmaterializadas e planeadas localmente, obedecem no entanto a um programa preciso - manipulação dos media, agitação cirúrgica, concentração de meios em zonas conturbadas, mobilidade logística, recrutamento de cidadãos muçulmanos de países ocidentais como "soldados de Deus", "oferta" de serviços às populações em zonas ocupadas, imposição de um padrão islâmico regressivo para todo o mundo muçulmano, mesmo nos países mais "liberais" (veja-se o caso da Tunísia), sendo que, só os alvos são aleatórios. Porque dependem, cada vez mais, de circunstâncias puramente operacionais.
Mas essa esquerda, que com várias nuances continua a colher os frutos daquilo que tanto detesta, esqueceu-se de um pormenor: este terrorismo não escolhe os alvos pela sua maior ou menor simpatia com a sua causa. Portanto, também ela pode ser vítima, também os mesmos que subscrevem, explícita ou tacitamente, a cruzada anti-ocidental, podem ser os próximos a cair. Toda esta história se resumiria simplesmente à ironia, se não fosse profundamente trágica.
bem analisado
ResponderEliminarFicou de fora a questão israelo-árabe, que está na origem disto tudo...
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