Reflexões, notas, impressões, apontamentos, comentários, indicações, desabafos, interrogações, controvérsias, flatulências, curiosidades, citações, viagens, memórias, notícias, perdições, esboços, experimentações, pesquisas, excitações, silêncios.

quarta-feira, 23 de agosto de 2006

A sopa Campbell's


Recomendo a leitura do recente post de Rui Bebiano intitulado "A Outra Revolução", no "Terceira Noite". Um contributo decisivo para arrumar uma questão fundamental do imaginário colectivo dos últimos 50 anos: medir o impacto das novas formas de cultura popular e de afirmação individual surgidos nos anos 60. Conforme aí se diz, os anos 60 e 70 definiram-se muito mais pela afirmação da juventude enquanto grupo social portador de um padrão de vida autónomo, pelo fulgor da nova cultura popular, por uma intensa abertura no campo da moral (incluindo a construção de uma sexualidade renovada), por uma atitude estética própria e omnipresente, pela emergência dos movimentos sociais de um tipo novo, pela afirmação de um modelo de sociedade de natureza anti-disciplinar, do que pela proeminência nos processos de mudança das organizações políticas da esquerda. Isto é, a música de Bob Dylan, as provocações pictóricas de Andy Wharol, ou "a imaginação ao poder" do maio de 68, exerceram uma influência muito mais acentuada do que o "eurocomunismo", a "terceira-via" ou as inumeráveis reinterpretações do marxismo. Essa influência foi exercida essencialmente em meios estudantis e em vastos sectores urbanos, sendo decisiva, em Portugal, para a eclosão do 25 de Abril.
Bem a propósito, caberá fazer uma reflexão pessoal sobre o que significa ser "de esquerda", hoje em dia. Verifico que, nas grandes questões geo-políticas mundiais pós guerra fria e sobretudo pós 11 de Setembro, as minhas posições raramente coincidem com as da esquerda tradicional. Em relação à dimensão do Estado e ao peso do funcionalismo idem. O mesmo se diga quanto à necessidade de alteração da legislação laboral e do papel dos sindicatos, ou relativamente às politicas de emigração. Perante isto, só poderei concluir o óbvio: o vínculo que me prende à esquerda é de ordem estética, defesa da separação entre o Estado e as igrejas, apreço pelas liberdades individuais, por movimentos sociais novos e formas de vida sem delegação de responsabilidades. Do ponto de vista ideológico e programático, nada me entusiasma. Antes pelo contrário. Até mesmo os zapatistas perderam o encanto. O irrealismo e a cegueira com que encara a contemporaneidade, balizando-se atrás de uma superioridade moral que ninguém vê excepto quem a invoca, torna-a risível aos meus olhos. Vejam-se as posições tomadas em relação ao conflito israelo-árabe, situação política em Cuba, luta anti-terrorista e islamismo radical, neo-populismo de Chavez e Moralez, tumultos de ordem étnica em França (a que se seguiu a ocupação da Sorbonne como protesto contra a lei que previa a flexibilização laboral para jovens à procura do 1º emprego, que incluiu a pilhagem e o incêncio de parte da biblioteca de um departamento), a escalada nuclear iraniana, o episódio dos cartoons dinamarqueses, etc.
A esquerda, durante muito tempo, soube ser a protagonista de uma pretensão política da utopia, de uma pretensão salvífica de carácter heurístico. Que após ter conduzido ao oposto daquilo que reclamava, para muitos se tranformou numa fantasia compensatória caracterizada pela má-fé, pela reivindicação de um futuro impossível e de um passado que jamais existiu. E o presente? Para responder, é importante salientar que, por trás de muitos movimentos de rebelião inspirados no igualitarismo, está a implantação e defesa de estruturas sociais fixas e não necessariamente melhores, ou mais justas. Para sair do beco sem saída em que se recolheu, a esquerda terá que perceber cabalmente quem são os novos humilhados e ofendidos da actualidade, ser a sua voz, abandonando definitivamente veleidades meta-históricas. Terá que saber falar para todos e não para uma assembleia de paroquianos que a sustenha, sociológica ou eleitoralmente.

3 comentários:

  1. Esqueceste-te das posições defendidas por essa esquerda quando foi levantada a questão da legalização da prostituição. "Nunca", segundo as vozes autorizadas, há que reintegrar as coitadinhas, seguindo-se os habituais piedosos votos. Já há muito tempo que não via uma tão profunda ignorância sobre o que realmente é a mais velha profissão do mundo. Enfim, nem sequer já temos esquerdalhos de jeito...

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  2. um post equilibrado, embora não subscreva muitas ideias.

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  3. Sobre a presença da organização terrorista FARC na Festa do Avante, veja-se este post no "Kontratempos":

    http://kontratempos.blogspot.com/
    2006/09/chamin-da-democracia.html

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