Para rematar o caso da transexual Gisberta, o Ministério Público decidiu alterar a acusação de homicídio na forma tentada para ofensas corporais agravadas pelo resultado. Como se a vítima perdesse a qualidade de sujeito e se tivesse tornado uma coisa. Tudo bons rapazes, é o que parece depreender-se deste desvario. Que, no desiderato, mais não fizerem do que uma comissão de vigilantes populares teria feito, para limpar as ruas do vício e da aberração. Preocupante. Sobre o tema, remeto para a excelente crónica de Ana Sá Lopes na edição de hoje do DN, que me chegou por via do "Da Literatura". Já antes se tinha lido um impressivo texto de Fernanda Câncio em "Glória Fácil", intitulado "Maldita Gi".
Sobre este assunto, e porque acho este comentário de JLP encontrado no "Blasfémias" absolutamente esclarecedor, tomei a liberdade de o editar e reproduzir como segue:
ResponderEliminar"Existir acusação existiu. O que sucede é que o MP em Portugal não funciona como uma "parte" no julgamento (como por exemplo acontece com o MP americano), mas tem sim a missão sui generis de zelar pelo "apuramento da verdade". O que o coloca numa situação em que, caso se venha a convencer da inocência dos arguidos, tem que pugnar pela sua defesa, ou pelo menos retirar essa parte da acusação.
O que será quanto a mim de questionar é este posicionamento utópico, já que não é na prática auditável se o comportamento do MP se rege por este princípio, acontecendo muitas vezes que acaba por ter um papel de parte no processo, mas gozando em face do seu estatuto de prorrogativas que tornam o combate com a outra parte desigual. Lembremo-nos que o Ministério Público se senta, por exemplo, nos tribunais ao lado do juiz ou do colectivo de juízes.
Se calhar o importante era efectivamente esclarecer e clarificar o papel do MP, assumindo de uma vez por todas o papel de parte e de elemento prossecutório.
Mas, já agora, face ao que é conhecido, compartilho da estupefacção em relação à acusação que subsistiu. Que se tenha transformado em ofensas corporais qualificadas uma coisa que se enquadra perfeitamente, quanto a mim, no homicídio por negligência, eventualmente com uma perspectiva de dolo eventual, uma vez que não se procuraram esclarecer absolutamente o facto de a vítima estar morta ou não e teriam a perfeita noção de que se tal não acontecesse viria a morrer ao ser atirado ao poço.
Já para não falar que, caso vingasse a sua tese de que pensavam absolutamente que estava morta, passa a haver também crime de ocultação de cadáver.
Algumas questões
1) Os adolescentes teriam a consciência (comprovadamente) de que a vítima morreria ou poderia morrer quando atirada ao poço?
2) O homicídio, nesse caso, teria sido colectivo (comprovadamente), isto é, perpetrado por todos e cada um do grupo?
Em relação à primeira, não acho que seja assim tão difícil de provar. Acho que é uma pura questão de bom senso (não estamos a falar de recém nascidos nem de pré-escolares) de que, se se atira uma pessoa a um poço, ou afogado, ou da queda, ou do facto de não conseguir sair de lá vai acabar por morrer. De qualquer modo, se a prova do dolo eventual fosse complicada, pelo menos a negligência simples acho que está perfeitamente comprovada.
Quanto à autoria material efectiva, claro que é sempre difícil de provar quando não há testemunhas externas. Mas isso não deveria ser razão para retirar a acusação e para deixar de a tentar provar, uma vez que há aparentemente prova sólida de que foi algum (ou vários) dos acusados que atirou a vítima ao poço.
Mas há pelo menos a cumplicidade que é óbvia, e subsiste a questão, repito, caso o testemunho seja de que achavam garantidamente que estava morta, de que houve ocultação de cadáver."
bem argumentado, sim senhor...
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