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domingo, 9 de abril de 2006

Imagens da Revolução Espanhola (8)


ESTA BOMBA NÃO REBENTARÁ

(história baseada num episódio relatado em A Esperança, de André Malraux)

Verão de 1938. Campos de Talavera, Espanha.
Decidia-se, na frente do Tejo, o apocalipse da jovem república espanhola.
Milicianos, colunas da F.A.I., (Federacion Anarquista Ibérica), membros da U.H.P. (Union de Hermanos Proletarios), oficiais, voluntários da XI Brigada, guardas de assalto, soldados do 5º Regimento de Lister, sindicalistas da C.N.T... Tal era o saldo das forças que cercavam Toledo há duas semanas.
Os rebeldes eram comandados pelo general Moscardó, à frente dos elementos da Guardia Civil, das tropas amotinadas e dos civis armados pelos nacionalistas. Entrincheirados no Alcazar e tomando como reféns muitos habitantes de Toledo, resistiam ferozmente ao assalto dos republicanos. Ficou conhecido este cerco como um dos episódios mais trágicos da Guerra Civil Espanhola.
I
De Burgos levantavam, prenhes de bombas, Savóias e Junkers, mensageiros de aço, recortes negros por cima das oliveiras, dos penhascos, dos montes aloirados, do caudal de sangue do Tejo, do vento, das barricadas, dos jogos de cartas, dos altifalantes espalhando pelo ar a Internacional e a Cavalgada das Valquírias, intrusos nesta paisagem austera, imensa, castigada pelo sol e pelo tempo. A morte descia, lenta e ágil, como as figuras de El Greco, escorria pelas valas comuns, pelos canais de irrigação, pelas trincheiras, pelo casario branco bordejando o rio. A morte era uma carícia de aço fumegante, bolas-relâmpagos de granito róseo que caíam aos milhares do céu azul, azul como que indiferente ao labor eterno da Criação.
II
Manuel atravessava os corredores do Alcazar, juncados de destroços e corpos queimados pelo lança-chamas.
Há pouco, tinha invertido uma dessas mangueiras de fogo contra o fascista que a empunhava. Porém, a sua coragem esbarrou no olhar do outro, "não é possível queimares vivo um homem que te olhe de frente", dissera-lhe um dia um companheiro da FAI, em Barcelona, após a tomada do Hotel Colón.
Dois segundos de hesitação ser-lhe-iam fatais. Não fora a intervenção rápida de um miliciano, seria a sua vez de ser consumido implacavelmente. Ouviram-se três tiros - o carrasco, procurando o vazio com os braços, caiu para trás com um baque surdo. As paredes do subterrâneo ficaram caiadas de sangue quente. Foi então que sentiu uma dor lancinante na mão direita. Olhou - a pele havia ficado colada ao cano em brasa.
Seguiam, um pouco atrás, alguns milicianos, absortos no abismo do seu ódio. Crispavam os dedos nas espingardas. "Talvez muitos deles tenham a mulher ou os filhos presos como reféns, lá em cima na torre", pensou.
"Deus pode esperar... como poderá esta gente pensar nele, depois de ver as igrejas repletas de oiro e os padres desculpando os assassinos no massacre dos mineiros asturianos, há quatro anos em Oviedo?"
Lá fora, o ribombar contínuo das explosões cessara. Ouviam-se, aqui e acolá, sons de metralha e gritos de comando. Subiu. Um luar de Verão, como só há no coração de Castela. Gradualmente, iam-se desenhando por entre as sombras os vultos no campo de batalha. Ao longe, as paredes desmoronadas e a torre sobranceira do Alcazar, a arena onde outrora os reis de Espanha assistiam aos torneios medievais. Porém, o cenário era já outro: um aglomerado trágico e disforme de terra levantada pelos obuses, no que antes fora uma mancha de trigo. Era se como por ali tivesse passado um arado gigantesco.
O pequeno grupo caminhava, aos tropeções, através dos destroços. " Ao menos teriam os dinamitadores de Pepe feito recuar os tanques dos marroquinos?". "Talvez sejam menos importantes os motivos porque os homens se matam do que os meios de que dispõem para matar os inimigos", teria por certo acrescentado Garcia, chefe do Servício de Investigacion Militar, envolto pelo fumo do seu cachimbo. Mas agora havia que encontrar, a todo o custo, Lopez, que coordenava a instalação das minas no sector avançado das posições defendidas pelos falangistas, no lado oposto da colina.
Na Primavera de 1934, durante a greve dos operários de Saragoça ( a maior e mais longa até então registada em Espanha), Manuel havia dirigido, com Durruti e Puig, um assalto aos camiões que transportavam o ouro do Banco de Espanha, em Gigon, para auxiliar os grevistas e suas famílias. A sabotagem dos eléctricos de Barcelona ficou igualmente célebre... Eram os tempos do Solidariedad, da Livraria Anarquista e do café Tranquilidad. " A tudo renunciaremos excepto à vitória", costumava dizer Durruti.
Uma barricada, "Quem manda aqui?", "todos e ninguém... porquê?", respondeu-lhe uma voz com sotaque mexicano. Continuou. Sucediam-se os gritos dos agonizantes, o brilho vago das lâmpadas dos delegados de secção, pedaços de metal retorcido, canhões desmantelados... "a organização do caos", dir-se-ia.
Subitamente, entre duas oliveiras apinhadas junto a um muro esburacado, distinguiu uns reflexos esverdeados, provenientes de um objecto metálico. Abeirou-se. Era afinal uma bomba que não tinha explodido. Pediu ao miliciano que segurava a lâmpada que se aproximasse. Cuidadosamente, pegou no obus, desmontou o percussor e extraiu do invólucro um papel amarelecido. " Fábricas de Toledo?" Olhou novamente o papel. Surpreendentemente, deu conta de uns caracteres impressos numa das faces. Foi então que pode ler, em português, a seguinte mensagem: " CAMARADAS, ESTA BOMBA NÃO REBENTARÁ. É TUDO POR AGORA ".
O novo dia ganhava contornos no horizonte. Suavizavam-se as sombras na terra revolvida. " A tudo renunciaremos e Deus esperará por nós..." Manuel sorria agora, ajoelhado ainda sobre a raiz esventrada de uma oliveira.

1 comentário:

  1. Este tema é fascinante. O último conflito onde se lutou por razão puramente ideológicas...

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