Uma coisa que se possa tocar, pegar, largar, uma coisa que pese nas mãos e que se possa olhar pelo lado de trás, que desloque o ar e desloque a água, que se a deixarmos cair, quem se parte é o nosso pé e não a forma, uma coisa fora do tempo, ainda presa a ele, suportada por ele no espaço, como se está desde que já houve um não eu para tornar-se eu, e haverá, até que haja um fim para o não eu, por meio do qual, e só dele, se podia alguma vez ter sido, suportado por isso, mas mais nada, apenas sobre ele, não condutor, como o pardal isolado, pelos seus duros pés não condutores, do fio de alta tensão, a corrente de tempo que corre através do recordar, que existe só para ele, uma coisa acompanhada pelo instante da virgindade, uma coisa onde se está absolutamente só, não como antes, não como depois, pois seja, o precipício, o precipício em que tu ardes, inventas o terreno para plantar jardins de fogo, jardins de sangue, um cintilar que divide e rasga, a luz que tudo devora, mas também o novelo que começa onde morre, a coisa, um belo pedaço de pedra ou de bronze, limpo e duro, a memória fora da carne, a memória que nada sabe de si própria, a pedra cortada, por dura que seja, pelo tempo que leve a fazer dela um rosto que sofre tão perto das pedras sendo já ele próprio uma pedra, mas se alguém lhe toca o mundo incendeia-se, e com ela possas abrir o teu corpo em dois para ler as letras do teu destino na noite das palavras degoladas, essa coisa que se possa tocar, segurar, olhar por detrás, inventar com o olhar, sentir a solidez, de modo que, ao deixar-se cair, não será nunca o silencioso fruto apodrecido que irá tombar, nem a coisa se quebra, mas o pé em cima de que cai, talvez o coração atónito, pois que o valor de um poema é a soma do que é preciso pagar por ele.
in "Labirintos"
in "Labirintos"
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