Reflexões, notas, impressões, apontamentos, comentários, indicações, desabafos, interrogações, controvérsias, flatulências, curiosidades, citações, viagens, memórias, notícias, perdições, esboços, experimentações, pesquisas, excitações, silêncios.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2006

A Memória das Coisas -4

CHÃOS – A Matança do porco

Já lá vão os convites aos vizinhos e familiares. Recolhido e seco o mato com que se vai chamuscar o cevado, chegou o grande dia. O matador, com ar solene que manterá e o distingue dos outros, prepara a sangria. Espera um pouco, ó Jaquim. É a voz da tia Alzira, embargada em emoção, tentando escapar da visão da morte de um personagem que ganhara a intimidade da casa. Um gesto vigoroso penetra a carne, a faca roda de forma a abrir as veias do animal. O sangue brota em golfadas, salpicando o vestido da Anita, e cai numa bacia onde se deitou sal e vinagre para não coalhar. Bate-me esse sangue, rapariga... É a recomendação do tio Rola à filha, que nem à mão de Deus Padre se voltava, gelada pelo derradeiro suspiro do bicho. Logo se lhe queima o pêlo com tojo, carqueja ou palha centeia, antes da toilette com pedaços de sangue cozido. Faz-se então o “cu ao porco”, para facilitar a extracção das tripas, lava-se a carcaça com vinho e um pano húmido e preparam-se os interiores, após o que é pendurada numa trave com a ajuda do chambaril, antes da desmancha. Morte sangrenta e brutal, sem dúvida, que permite quebrar um olhar demasiado humano que liga o homem ao animal: “Queres conhecer o teu corpo, abre o teu porco”...

Sem comentários:

Enviar um comentário