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quarta-feira, 28 de setembro de 2011

O buraco

Uma das características mais irritantes e empobrecedoras dos portugueses é o seu secreto fascínio pelo mando e por quem o exerce. Que cria uma original desigualdade na apreciação de um mesmo comportamento, consoante quem o pratica. Reparem que falo em mando e não em poder. Essa tendência anda de mãos dadas com episódicos actos de barbárie, mais próprios da turbamulta descontrolada. Como exemplo maior, temos o fascínio pelos autos de fé, ou o tristemente célebre massacre de judeus em Lisboa, em 1503, por instigação de um cristianíssimo frade dominicano. Essa bipolaridade, na forma como são encarados os vilões consoante o seu poderio, é só aparente. Ou seja, esse fascínio que mencionei revela-se por vezes das formas mais caricatas. Veja-se o que se passa com a "descoberta" do buraco orçamental da Madeira. É claro que o régulo Jardim se limitou a reproduzir os tiques despesistas e os modelos de desenvolvimeto dos seus émulos políticos do continente. Começando, por exemplo, em Cavaco Silva. Refiro-me, obviamente ao que nos foi vendido de há 25 anos para cá: "desenvolvimento" baseado no betão e na despesa pública descontrolada que o dinheiro fácil da UE tornou possível. Todavia, essa venalidade paga por todos adquiriu aí uma dimensão terceiro-mundista, num território onde não funcionam os mecanismos tipicamente democráticos de controlo, fiscalização e alteridade do poder. Exposta perante a opinião pública esta gestão danosa dos dinheiros públicos, a reacção não se fez esperar: Jardim passou a bode expiatório de todas as trapalhadas onde andamos metidos. Quando na verdade o homem é simplesmente um bom aprendiz de feiticeiro. O mesmo que tirou partido da conjuntura favorável, das lealdades partidárias, dos votos "vendidos" na AR, de ter prosperado numa coutada por si criada, onde a democracia foi "suspensa" ad eternum e, sobretudo, da vista grossa de quem já há muito deveria ter denunciado o regabofe. É isto que é preciso ser dito. Responsabilizando-o politica e, sendo o caso, criminalmente, pela "façanha". Voltemos agora ao início desta reflexão. Perante essa exigência da saúde democrática do regime que é apear Jardim e sua clique, apareceram logo as consciências de aluguer do costume: comentadores avulso (do programa "contraditório" da Antena 1, por exemplo) que não "alinham no coro das críticas" a Jardim, uma "excelente pessoa", acrescentam; políticos menores, que não perdem uma oportunidade de ter um microfone estendido (Morais Sarmento, por exemplo, critica o "linchamento público" do rei do Carnaval madeirense). E a que se deve esta originalidade desculpadora? Em minha opinião, precisamente ao tal fascínio pelo mando e por quem o exerce. Se se descobrisse que um simples cidadão tinha feito umas habilidades com dinheiros públicos, ninguém poria a mão no fogo por ele, nem nenhuma instância ou comentador levantaria o princípio sagrado do in dubio pro reu. É precisamente esse mesmo fascínio que leva, a quem por ele é tomado, a passar por cima de normas básicas de comportamento. A justificar nos outros a afirmação do "triunfo", do "sucesso". A buscar nos outros um poder alucinado, demencial. Apagando em si o que resta da empatia e da vitalidade indispensáveis ao amor. Afinal, o verdadeiro poder. 

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