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sexta-feira, 25 de março de 2011

Logo à noite


Sim, lá estarei na mesa. Mas lateja-me aquela frase: "hoje há muita gente que escreve poemas, mas escasseiam os poetas". Aparece sempre no meio de um desejo de quietação. De uma responsabilidade que não se pode descartar. De uma oportunidade que a grandeza concede à dúvida. Mas o que estou a dizer? Será assim tão certa a rarefação?  Haverá uma ordem directamente proporcional nesta fatalidade?  Talvez. A dissolução sem medida, ou a clausura ardente não é para todos. Mas não é preciso exagerar. Os poemas desses poetas que não dispensam o estilo ou a feroz candura, como que inoculam uma espécie de dislexia nos seus hospedeiros.  Muito tempo e nenhuma pressa. Fazem devorar a realidade mais depressa do que esta se consegue regenerar. Abrem brechas, túneis e alçapões. Onde a luz nunca se esconde. Os tais poemas  desses tais poetas nunca estão no mesmo local. São poemas portáteis, negociados entre poetas nómadas. A impiedade é a sua  arma de sobrevivência. O seu recesso amoroso.  A sua moeda de troca.  
Mas como chegámos aqui? Amputada do seu berçário imemorial, a cosmogonia, a poesia banalizou-se. Sucumbiu à vertigem da individuação massificada. Abandonou a contenção. Deixou de ter um crivo a separar a escória do minério. Passou a ter boas maneiras. Longe, muito longe, a monitorização do apelo visceral. Adquiriu propriedades ansiolíticas ou euforizantes, para escravos e hibernantes. E o que fazem os escrevinhadores de poemas à poesia? Epitáfios bem intencionados, nada mais. Refinados ou pré-lavados produtos do ócio, da venalidade, da desatenção. Anseios de reconhecimento e, não raras vezes, de simples comiseração.

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