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sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Por acaso

O nascimento do romance, enquanto forma original de criação literária, está intrinsecamente ligado ao triunfo de um corpo político feito à medida da nova sociedade burguesa, em meados do séc. XVII. Refiro-me ao Ocidente, claro está. Pois que, entre outros exemplos, o Japão do séc. XI já nos havia presenteado com o fabuloso "Romance do Genji". Ora, esse corpo político pressupõe: 1º que a segurança seja assegurada pela delegação da força nas mãos do Estado, em regime de exclusividade; 2º que os indivíduos, para quem a vida pública se manifesta sob o disfarce da necessidade, adquiram um renovado interesse pela sua vida privada e pelo seu destino pessoal, eliminadas as antigas conexões naturais com os seus semelhantes; 3º que esses mesmos indivíduos só possam julgar a sua vida pessoal comparando-a com a dos outros, tomando essa relação a forma de concorrência; 4º que, implicitamente - e porque dotados todos eles pela natureza de igual capacidade e protegidos uns dos outros pelo Estado, que regulamenta os negócios públicos e os interesses em presença sob a justificação da necessidade - apenas o acaso seja apto a decidir quem vencerá.
Significativamente, esta elevação do acaso à posição de árbitro decisivo da vida viria a atingir o seu ponto mais alto no séc. XIX. Como resultado, surgiu um novo género de literatura, que acompanhou o declínio do drama: o romance. É que o drama perdeu o sentido num mundo sem acção, enquanto o romance podia tratar adequadamente os destinos das pessoas, fossem elas vítimas da necessidade ou favoritas da sorte. Balzac, de quem li recentemente "O Pai Goriot" (1834), demonstrou todo o alcance do novo género. E chegou a apresentar, nas 88 obras que compõe a sua "Comédia Humana", as paixões humanas como o destino do homem: sem vício nem virtude, nem razão, nem livre-arbítrio. Só o romance, na sua completa maturidade, podia pregar o novo evangelho da paixão do homem pelo seu próprio destino. E através dela, o criador literário tentava traçar uma distinção ente si e os outros, proteger-se contra a desumanidade da boa e da má sorte, desenvolver, em suma, todos os dons da sensibilidade moderna. Tão desesperadamente necessária à dignidade humana. Mas exigindo que um homem seja, pelo menos, uma vítima, se não puder ser outra coisa.

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