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terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Filmes para uma vida (2)


Os Filhos da Noite ("They Live by Night", 1948, 95'), de Nicholas Ray

Com: Cathy O'Donnell, Farley Granger, Howard Da Silva, Jay C. Flippen, Helen Craig, Will Wright, Ian Wolfe; Argumento: Charles Schnee e Nicholas Ray, segundo o romance "Thieves Like Us" de Edward Anderson; Produção: RKO Radio Pictures.

Comentário: Bowie (Farley Granger) é um jovem que acaba de fugir da cadeia com mais dois comparsas. Juntos dedicam-se a assaltar bancos no Midwest. No entanto, Bowie nada tem a ver com os outros, violentos e sem escrúpulos. Numa das casas "seguras" onde o bando se refugia, oferece a Keechie (Cathy O'Donnell) um relógio. Começa assim uma das uniões mais ternas do Cinema americano da década de 40. Mesmo sabendo que será dificil provar a sua "normalidade", já que o sensacionalismo dos media e a desenfreada caça ao homem criou uma histeria colectiva, Bowie mantém ainda a sua inocência. Mesmo depois de ter passado os seus últimos (e adolescentes) anos fechado numa prisão. A presença da também tímida Keechie faz-lhe crescer uma esperança de redenção, em contraste com a hostilidade que os cerca. Perante a qual só podem opor a grandeza dos sentimentos e a fuga. Uma história de amor tão intensa quanto trágica. Fazendo lembrar, em certos momentos, o cenário de "Palmeiras Bravas", a obra inesquecível de Faulkner, de pedra e cal no meu top 10 literário.

Com esta obra estreante, Ray tornou-se imediatamente notado no panorama cinematográfico da época. Num dos trabalhos mais notáveis de sempre do Cinema americano, cria um espantoso retrato de uma 'America Interior', de pulsões estranhas e primárias, pouco mostradas até então no Cinema. Sendo considerado um film noir, as personagens não se refugiam nas sombras das grandes cidades, mas sim na quietude das pequenas cidades rurais, aspirando um dia conseguir um lugar ao sol.
Ray parece aqui obcecado com a questão da justeza dos meios para as duas personagens atingirem a liberdade, ao colocá-los em permanente inquietação e sobressalto. Com isto, o realizador parece simultaneamente querer denunciar algum desmazelo social pelos mais desprotegidos. Mas não deixa de assim alimentar o mito do criminoso romantizado, melodramático, tradição prosseguida através dos road movies do género (de que Bonnie and Clyde é o exemplo maior) da qual Ray se torna aqui um feliz precursor.
They Live by Night mantém-se ainda hoje como um dos mais pujantes filmes da década de 40, anunciando já a beat generation e os adolescentes rebeldes sem causa (não será Granger o modelo de Dean, Brando ou Newman?) e o realismo dos anos 50. Como se tal não bastasse, a sua influência imergiu em obras contemporâneas, desde os delírios de Oliver Stone em Natural Born Killers, até a objectos cinematográficos mais sérios, como Wild at Heart. Simplesmente fundamental.

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