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terça-feira, 15 de dezembro de 2009

A ferida

Por vezes, o narcisismo descontrolado encontra o seu terreno de eleição. Ou seja, aquilo que, à falta de melhor, se poderia chamar a "arte". Não como um meio de criação de valor, claro está. Ou de humilde aproximação à caótica e evanescente trepidação da vida. Ou como um encontro a que não se pode fugir. Esses são atributos da arte sem aspas. O auto proclamado "artista" resume a arte a um espectáculo onde a estridência (a sua) faz as honras da casa. À sanha onde toma a outra arte, a autêntica, como um terreno de luta pela sua afirmação pessoal. Ou seja, uma continuação da política exactamente pelos mesmos meios. Porém, com um subtil toque de Midas: vendida como coisa diferente, certificada, prestigiante. Mas se assim é, o "artista" pode tardar a assumir abertamente o seu verdadeiro animus dominii - o exercício alucinado de um pequeno poder num círculo blindado - mascarando-o, provisória, mas eficientemente, com a inimputabilidade da sua condição de "artista". Desta forma, porque não diz ao que vem, o seu mérito artístico nunca chega a ser escrutinado, porque encarado como simples labor político. Porém, no fundo, o "artista" narcísico vive cercado pelo medo: da escassez do aplauso, da isenção de quem pensa fora da matilha, da usura do tempo. E, sobretudo, desdenha a liberdade do criador que sabe onde está o verdadeiro poder. Ou seja, precisamente na ignorância, na disponibilidade incondicional para a brincadeira. O multi-artista, pelo contrário, leva-se totalmente a sério. O aplauso é o múnus dos que o cercam. Não sabe que, na verdadeira arte, o oficiante deixa-se morrer um bocadinho. Na condição de simples agente de um fulgor que não é seu, mas que todavia faz brotar. Nada de novo, portanto. Os pequenos totalitarismos só diferem dos grandes pelo número de caracteres que lhe dedicam os compêndios de história.

1 comentário:

  1. Uma bela descrição da corrupção moral que grassa no mundo "imaculado" da cultura. Onde há de tudo, é certo, mas também disto.

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