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quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Vida nova

Falta então uma leitura política das eleições na Guarda. Tão breve quanto a inconveniência de pisar o mesmo chão que já foi pisado e repisado. E menos estrondosa do que um motoqueiro a jogar Metal Gear Solid num open space.
Quanto às sondagens, houve de tudo. Desde o simples disparate estatístico, até ao delírio de quem se julga com dons proféticos. No entanto, todas acertaram numa coisa: Valente iria ganhar. Previsão que nada, mas mesmo nada, tem de original. Era clarinho como água. Ou então, como é habitual dizer-se, "até um ceguinho... aetecetera e tal..." Para quem tivesse dúvidas, havia ainda o recurso aos serviços do Prof. Karamba. Ou, então, pedir um conselho à Maitê Proença. Os mais exigentes poderiam mesmo ir à Grécia ouvir os deuses. Diante dos consulentes, a Pitonisa de Delfos nem sequer se daria ao trabalho de iniciar os trabalhos de adivinhação. "Vão de volta para a Oppidana, pois o Valentix vai ganhar os Jogos deste ano. Crespvs não tem hipótese. Vá, tomem umas "coisinhas" para a viagem, umas sementinhas p'ra rir." E assim foi.
Deixemos agora o tom humorístico e passemos aos resultados. Em relação a 2005, a lista de Valente obteve mais 3% e a de Crespo menos 5% dos votos. O que chegou para o PS roubar um vereador ao PSD e assim reforçar a maioria (5/2). Como curiosidade, o PCTP/MRPP teve mais 20 votos. Obra do divino espírito santo, sem dúvida. Para a Assembleia Municipal, o PS teve mais um mandato e o PSD menos dois, indo o outro para o BE, que ficou com dois. Nas Juntas de Freguesia, o PS conseguiu mais 8 mandatos e o PSD menos 36. Destaque para o reforço das candidaturas independentes, que obtiveram mais 12 lugares.
Estes são os números. Antes da sua leitura, convém reafirmar o meu único propósito neste acto eleitoral: encontrar o projecto que melhor servisse e Guarda e com capacidade para iniciar um novo ciclo político. Destarte acabando com os bonzos e respectivas redes de influência e emprego. Elementos que ainda pervertem a vida pública na cidade e a transparência nas nomeações e nos procedimentos administrativos. Percebi que a candidatura de Valente reunia essas condições. E percebi também que a de Crespo de Carvalho estava condenada ao fracasso. As razões são várias. Lembro a não inclusão de temas fulcrais no debate político: o endividamento, o financiamento das autarquias, como captar investimentos, qual o modelo de desenvolvimento para a Guarda, com quem, etc. O seu programa e a sua mensagem não passaram de uma colecção de vacuidades, que poucos levaram a sério. Ninguém no PSD percebeu que o figurino de uma campanha para as autárquicas é diferente de outra campanha qualquer. Onde o sentimento de partilha de uma situação de proximidade, de desafios comuns, de pertença a determinada comunidade, são os sinais afectivos estruturantes de qualquer programa que se apresenta a sufrágio. O perfil da equipa liderada por Crespo de Carvalho mais parecia o de um grupo de amadores, "senhoritos" ao jeito ibérico, "cavalheiros" da indústria (?) sem fábricas, avessos ao debate, ao potencial da cultura como alavanca de desenvolvimento, à criatividade, à "política". pura e dura. No fundo, um modus operandi consentâneo com a característica vacuidade ideológica do PSD. Uma fatalidade, por muito que Pacheco Pereira reme contra a maré...
Vale agora a pena, en passage, despender algumas linhas sobre o BE (nacional e local). Como é sabido, trata-se de um partido que, organicamente, congregou grande parte da extrema-esquerda. Mas cuja expressão eleitoral há muito ultrapassou a sua marca genética. Cresceu amparando-se nos grandes temas da agenda política nacional e internacional. Seleccionado alguns deles para condicionar a agenda parlamentar do PS e do PCP, sem descurar o protesto "na rua". Tudo com o beneplácito da comunicação social, que escandalosamente o apaparicou de forma acrítica. Entretanto, a crise económica e social validou-o como partido oficial do protesto. Algo que os números expressivos que obteve nas últimas legislativas vieram dar corpo. Todavia, para um observador atento, tornou-se patente que esses números sinalizaram o tecto eleitoral do BE, o seu princípio de Peter. Com as autárquicas, a fragilidade e o carácter volúvel do seu eleitorado, da sua implantação, vieram ao de cima. Limitando-se a recolher o voto dos indefectíveis e afastando o "outro", o que votou no Bloco há três semanas. Que confia no BE como "megafone" reivindicativo, mas não como "aqueles" que vão alcatroar a estrada e reparar as condutas de saneamento. Para agravar o cenário local, o BE guardense prima pela ortodoxia e pelo aparelhismo do tipo Estalinista. Em vez de eleger temas onde, normalmente, o BE, na sua versão esclarecida, está mais à vontade - a cultura, os novos movimentos sociais, os costumes, as novas formas de determinação e inclusão/exclusão dos cidadãos - o seu cabeça de lista, Jorge Noutel, quis aparecer como o magnânimo "provedor municipal". O mesmo que declarou, em relação à cultura, que apreciava fundamentalmente ranchos folclóricos e bandas filarmónicas, sem uma palavra sobre políticas culturais no concelho, nem um gesto de simpatia para com as (poucas, mas activas) colectividades locais que "falam outra língua", nem uma intervenção que denotasse preocupações ambientais. Preocupou-se sobretudo em cativar, de forma populista, certos nichos eleitorais onde era previsível o Bloco penetrar. Todavia, ao evitar tudo aquilo que compõe a verdadeira modernidade, demonstrou porque é que o conservadorismo de esquerda é o mais nefasto de todos.
Portanto, Joaquim Valente ganhou e grande parte dos créditos do triunfo pode reivindicá-los pessoalmente. Espero agora que o PS local perceba que este reforço da votação traduz um conjunto de sinais inequívocos por parte do eleitorado. Um deles manda que se enterrem de vez as figuras de cera do "antigamente". O outro diz que se dê voz ao know how, às competências técnicas, humanas e profissionais dos guardenses, até agora, em grande medida, subrepresentadas. Outro ainda, mais ténue, que a cultura e o ambiente sejam temas prioritários na nova gestão. Será?

2 comentários:

  1. Se as eleições legislativas em Portugal, não se baseassem exclusivamente no modelo de círculos uninominais (como aliás se faz em países desenvolvidos), concerteza que o discurso acerca do BE seria outro. E a facilidade de implantação a nível local daquilo que se poderia considerar um partido emergente, seria algo mais que uma miragem e até talvez o Dr. Garcia Pereira tivesse sido eleito, saudações.

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  2. Creio que o anónimo está enganado em várias coisas:
    1º vantagens e desvantagens dos vários sistemas eleitorais, na perspectiva de um partido "emergente";
    2º os motivos do não crescimento do BE;
    3º predominância dos círculos uninominais nos "países desenvolvidos".
    Começando pelo último item, acontece que, na sua modalidade pura e dura, tal sistema só existe no Reino Unido nos EUA e na Índia. Não sendo adoptado na maioria dos restantes países onde existe democracia representativa. Passando ao primeiro ponto, são precisamente os modelos plurinominais, como o actual, que garantem a proporcionalidade e a correcta distribuição dos mandatos pelo número de eleitores existentes em cada círculo. A preocupação do BE, como parece ser também a do anónimo, é a proporcionalidade, ou seja, a possibilidade de o espectro político estar representado no seu todo, de acordo com os votos recebidos, ao contrario do que acontece no sistema "the winner takes it all". O que significa que não é por causa do actual sistema que o BE não teve mais deputados. Bem pelo contrário. Poder-se-á "culpar" o método de Hondt, mas isso é outra história. Acontece mesmo que a implantação difusa do Bloco pelo território nacional, embora com tendência para a concentração nas médias e grandes cidades e sobretudo nas áreas metropolitanas, aconselha a opção por um sistema misto, semelhante ao alemão. Neste caso, existem paralelamente círculos uninominais, que garantem a proximidade e a responsabilização dos eleitos, e um círculo único nacional, necessariamente plurinominal. que vai salvaguardar a proporcionalidade na representação, que de outra forma não seria contemplada. Por último, o problema do BE é outro e o anónimo sabe-o bem: é útil para as boas causas e pouco credível quando se trata de exercer funções governativas, seja nas autarquias, seja nos órgãos de soberania. Ou seja, trata-se de um partido que se move cada vez mais de acordo com a lógica do poder, mas que recusa a possibilidade do seu exercício. Por isso é que o seu "eleitorado" é uma realidade virtual, expansível ou retráctil de acordo com a crise ou a necessidade de protesto.

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